Mox in the Sky with Diamonds

sexta-feira, julho 31, 2009


DIA DO ORGASMO

HOJE É "DIA DO ORGASMO". Como? Pois é. Ouvi no rádio.
Um "Dia do Orgasmo" pode significar muita coisa. Em primeiro lugar, o visível desconforto dos conservadores que odeiam o prazer sexual. Para esses seres humanos pré-freudianos, bom é reprimir e reproduzir. Alvos fáceis da psicanálise, não raro projetando no outro todos os seus desejos e sofrendo o efeito ricochete, freqüentemente terminam humilhados em praça pública. (A magistral análise de Contardo Calligaris sobre o governador Spitzer -- o "Moralizador" -- esgota o tema.)
Mais interessante do que essa simples confrontação entre conservadores e liberais, típica dos anos 60, é analisar a questão sob o prisma contemporâneo, na linha do ensaio "Elogio à Profanação", de Giorgio Agamben.
Profanar, ensina o filósofo italiano, tem um sentido técnico que não deve ser ignorado: significa devolver ao uso comum aquilo que havia sido separado na esfera do sagrado. Imaginem um santinho de presépio. No momento em que se termina a escultura, aquilo que era um simples acrílico passa à esfera separada, tornando-se indisponível ao uso comum. Não raro o objeto é inclusive "benzido" na Igreja. Profanar esse santinho não é o chutar, como certa vez fez um bispo da Igreja Universal. Isso poderia ser uma heresia. Profanar significa inventar o novo uso; não por uma crítica ou afronta, mas mediante uma espécie de distração, indiferença à separação. A criança que resolve brincar com o "bonequinho" está o profanando, retirando-o da esfera do sagrado à qual ele pertencia. Os maconheiros que fecham baseados com folhas da Bíblia estão a profanando, inventando um novo uso para o objeto sagrado.
O sexo pode ser profano ou sagrado. Profaná-lo pode ser restituí-lo ao uso comum, tirando-o da esfera separada. A Igreja sacralizou o sexo ao reduzi-lo à função de reprodução, pregando uma ascese que envolvia a repulsa da "carne" (infelizmente, Michel Foucault não teve tempo de escrever esse último capítulo da "História da Sexualidade"). Profaná-lo poderia ser devolver o uso aos corpos, inventando novas formas de sexualidade. E, de fato, o sexo foi profanado. Os puritanos têm pouca ou nenhuma voz na nossa sociedade; salvo quando seus interesses se juntam estrategicamente a outros (como ocorre no caso Berlusconi, hoje em dia). Embora não totalmente não demovida a questão da carne e sua repressão (que Freud, de certa forma, canonizou no Mal-Estar na Civilização), hoje podemos ter "Dia do Orgasmo".
Mas Giorgio Agamben não pára por aí. Na sua fase atual, diz ele, o capitalismo se transformou em um gigantesco mecanismo de captura das profanações. A principal estratégia que esse capitalismo utiliza para capturá-las é o espetáculo. No espetáculo, aquilo que inicialmente era profano passa a ser - enquanto profano - separado na esfera do sagrado. Um exemplo: o grunge - "movimento" de rock que abarcou bandas de Seattle no início da década de 90, incluindo Nirvana, Pearl Jam, Alice in Chains, Mudhoney, Soundgarden, Temple of the Dog - inicialmente surgira como "contestação" do espetáculo. Seus integrantes usavam roupas quaisquer, ou seja, simplesmente camisas de flanela e calças jeans, em contraponto às polainas, glitter e permanentes do hard rock farofa até então prevalente (bandas como Poison, Bon Jovi, Van Halen, Kiss). Em princípio, isso parecia uma profanação. Porém a estratégia do espetáculo era sugar tudo para seu interior, como um buraco negro que tudo engole. Por isso, as camisas de flanela, que nada mais eram do que roupas comuns em Seattle, foram elas próprias separadas e sacralizadas. Assim o espetáculo engoliu a profanação e criou o "Improfanável". É precisamente esse lugar vazio (que os grunges queriam estabelecer) que dá a chance de o Novo surgir, pois sem esvaziamento ou suspensão do existente não há chance para que algo novo aconteça. E é esse lugar vazio que o poder se apropriou pelo espetáculo, transformando-o -- ele, que seria o lugar profano por excelência -- em lugar sacro, em algo separado no seu próprio vazio de sentido. Assim, o vazio contemporâneo não é mais a chance de algo novo, uma "clareira" em que o existente é suspenso e o outro pode vir, mas sim um ídolo, um vazio "forte" que se impõe na sua própria insipidez sem que possa ser contestado.
Agamben termina o seu ensaio referindo a pornografia. Para ele, o dispositivo da pornografia captura as condutas profanatórias -- que restituiriam o sexo ao uso comum, fazendo girar a capacidade circular que o ser humano tem de inventar comportamentos lidinosos -- colocando-as em uma esfera separada que é idolatrada por consumidores solitários. Assim, a chance que se abriu com a derrubada da sacralização-conservadora da ascese cristã é sugada por um dispositivo que captura as profanações daí surgidas, colocando-as na esfera separada/espetacular da pornografia. Imoral, diz Agamben, não são as atrizes individuais nem as condutas sexuais, não raro de intenção liberatória, mas o dispositivo da pornografia. No campo sexual, o dispositivo que captura a profanação e a separa no espetáculo é a performance do indivíduo -- regida pelos seus "especialistas" (os "sexólogos").
Em que aplicamos isso ao "Dia do Orgasmo"? Não será esse dia mais uma tentativa de captura da vida pelos dispositivos do poder? Para que precisamos de "Dia do Orgasmo"? Para consumir brinquedinhos? Aumentar procura por quartos de motéis? Celebrar em restaurantes? Alugar filmes na locadora? Melhorar a "performance"? O que interessa é a vida; ou seja, essa esfera espontânea que não se submete a instituições ou dispositivos, que está fora de qualquer relação com a norma. Por isso, o sexo não deve se tornar um conjunto de compromissos sadianos -- como ressaltei uma vez e o GD, de certa forma, comenta novamente -- mas o livre-uso do corpo e do prazer, a restituição da carne ao uso comum, a penetração de Eros e seus jogos profanos independente das ordens que emanam dos dispositivos.
Profanar o Dia do Orgasmo, portanto, só pode ser a plena indiferença ao Dia do Orgasmo no ato sexual.

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quarta-feira, julho 29, 2009


GENIUS: O LIMITE DA PSICOLOGIA

A psicologia -- supostamente dilaceradora da segurança do "Eu" cartesiano, ou simplesmente da consciência -- é ainda refém de Descartes, pois nada pode dizer acerca do impróprio.

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segunda-feira, julho 27, 2009


ALTERIDADE E SACANAGEM

ESTOU HÁ HORAS para escrever esse post. Mas, como até agora não consegui fazer o assunto emplacar, a escrita ficou meio travada. Mas aí quando eu leio um blog genial como esse, até dá vontade de escrever. E também admito a inspiração direta desse post.
É possível que os parceiros (homens ou mulheres, homo, hetero, bis, etc.) mantenham uma relação afetiva com base na ética da alteridade? Foi mais ou menos por essa linha que Zygmunt Bauman, por exemplo, criticou a sociedade contemporânea e suas relações afetivas em "Amor Líquido". Ou, por exemplo, é dessa forma de Joel Birman, no brilhante "Mal Estar na Atualidade", traduz o narcisismo como estado em que o indivíduo usa o corpo do outro unicamente para predação, sem aprender a admirar sua alteridade. E, por uma época, eu realmente pensei que esse era um bom ponto. Aliás, é um bom ponto.
Qualquer pessoa com experiência afetiva e um pouquinho de inteligência sabe que não existe beco mais sem saída do que uma relação em que não existe respeito pela alteridade do outro. Não existe maior armadilha do que a representação. Quer ser infeliz no amor? Simples: basta, ao conhecer uma nova pessoa, colocar nela a realização de todos os seus desejos e ficar imaginando que irá a transformar na pessoa ideal. "Ela tem tudo para ser exatamente como eu gostaria que fosse minha mulher!". "Ele é um pouco ..., mas em breve será o homem ideal!". Fracasso certo. Não vai funcionar. Ao aceitar outra pessoa, precisamos inicialmente começar pela diferença, se não a coisa não tem qualquer chance de funcionar. Aquela imagenzinha escondida na nossa cabeça -- a "mulher ideal", o "homem perfeito" -- são representações. E representações só existem enquanto tal; no mundo real, o que existe é brutalidade do real (ou seja, a alteridade). O outro não é o que eu penso que ele é, nem quer ser. Se tentar, vai sofrer um monte. Os dois, aliás. Se começo uma relação acreditando que posso mudar o outro, não comecei nada. Já comecei com violência; é uma relação natimorta. O "passado" sadio foi imediatamete engolido por uma estrutura que já começou corrompida. E, por isso, vemos tanta gente sofrendo, desesperada para "salvar a relação", ou, pior, incapaz de desistir do seu projeto. Sob esse prisma, a ética da alteridade tem toda razão.
As coisas começam a se complicar quando a questão da "violência" é equacionada. Com sua postura radicalmente anti-violenta, a ética da alteridade pode acabar exagerando em certos pontos. Porque o Marquês de Sade sabia algumas coisas.
Não posso ser acusado de não ver seriamente as coisas. Aliás, geralmente me acusam -- desde criança -- de ser sério demais. De fato. É que, em relação a certas coisas, o riso é obsceno. Diante da barbárie, da catástrofe que se arrasta na história e vai consumindo vidas sobre vidas, não há riso possível. Só indignação. E, nesse ponto, pensadores bufões como Nietzsche e Sade podem ser legitimadores da barbárie. Sua ironia cínica pode ser uma estrutura de "festa da Totalidade". Sobre isso, já falei por aqui.
Porém não é disso que estou falando. As relações entre sexo e violência são claras. Se, na área propriamente política, a violência é inadmissível, em qualquer nível (nesse ponto reside meu radicalismo e minha posição política), no amor, poder e violência fazem parte do menu. Sade sabia disso. Nietzsche -- um completo fracassado no plano afetivo, diga-se de passagem -- também, de certa forma, sabia -- e por vezes tinha medo (das mulheres, especialmente). O erotismo da nossa época é indissociável do poder. Contardo Calligaris certa vez escreveu uma passagem que vale a pena reproduzir ipsis litteris:

A leitura prolongada de Sade me produz sempre uma espécie de enjoo. Não é efeito de horror ou de reprovação; acho que meu mal estar tem duas causas: a sensação de que não há como fugir da insistência das fantasias eróticas e a constatação de que, no erotismo moderno (que Sade propriamente revelou), sexo e poder são indissociáveis, como se fosse impossível desejar um corpo sem querer prendê-lo, atormentá-lo e, em última instância, supliciá-lo ou (dá na mesma) sem querer ser preso, atormentado e supliciado por ele.

O amor erótico tem um jogo; e é preciso jogá-lo para que a coisa aconteça. Nesse ponto é que vejo o limite da "santidade" de Levinas (aliás, é sintomático que Levinas pule essa etapa em "Totalidade e Infinito", já constituindo a relação homem/mulher como uma "casa") ou do amor bem-comportado de Bauman. No jogo erótico, não há limites. Com Eros não se joga da mesma forma que com o amor "cristão", a solidariedade com o outro. Eros joga pesado. Seus jogos são jogos perigosos. Suas fantasias não são domesticáveis. O belo e o feio fazem parte desse jogo. O moral e o imoral, jamais. É esse o risco que certo discurso feminista -- com o qual, via de regra, concordo -- corre. Ao hipostasiar demais a ética da alteridade (nesse caso provavelmente desempenhando o papel de lençol que encobre ressentimento), pode acabar esquecendo Eros e seu jogo terrível, mas necessário. O jogo perigoso de Nietzsche, Freud, Sade, Battaile, Deleuze. Um jogo que o perverso não apenas pode jogar, como inclusive costuma jogar melhor que os demais. Bauman, ao se arriscar nesse terreno, acaba parecendo os padres da Igreja, e isso risco é mortal para a ética da alteridade. O moralismo com que analisa os novos jogos de poder e erotismo da contemporaneidade causa uma inevitável dor-de-cabeça a qualquer nietzschiano.
Eros gosta de brincar. Eros profana. Eros jamais santifica. Eros não pode sacralizar. O Eros sacralizado é um Eros perdido, decaído, corrompido. O Eros santificado é um Eros inexistente. Quem santifica o outro, não tem Eros. Eros é poder e violência. As identidades eróticas se constróem nesse jogo. Quem tenta dele escapar, sai de cena. Eros não é justo ou injusto; Eros existe, nos atravessa e constitui aquilo que poderíamos chamar de "ordem do desejo", na qual o puro e o impuro se nublam, o certo e o errado se perdem, na qual o outro não pode me interpelar.
O risco do ascetismo -- contra o qual me vacinei desde a leitura de Nietzsche, há mais de dez anos atrás -- é um fantasma que percorre a ética da alteridade. Ler Levinas, Adorno e Blanchot numa mão está certo, porém com Battaile, Deleuze e Guattari na outra. Na sacanagem ninguém se salva.

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sexta-feira, julho 24, 2009


ESPERANDO UMA ESFERA PÚBLICA

VOZES INDIGNADAS contra José Sarney. Afinal, ele assumiu ontem no Congresso Nacional, não é? Os colunistas da Folha -- que antigamente eu passava os olhos -- soam tão entediantes que sequer abro o respectivo link (leio a versão virtual do jornal - e hoje não mais que uns 5 colunistas - nenhum jornalista - me interessam). É tanto moralismo bobo, hipócrita e seletivo que a leitura se torna simplesmente insuportável. Afinal, Sarney sempre esteve aí. Sequer é a primeira vez que preside o Senado. Por que, então, agora, e não antes?
O mesmo que escrevi sobre Yeda cabe aqui: quando um poderoso cai nas malhas do sistema punitivo, é porque perdeu a cobertura. O movimento político midiático é plenamente visível: trata-se de cortar um dos elos de Lula com o PMDB, atirando contra a futura candidatura Dilma Roussef. Qualquer um que ache que é bom-mocismo e republicanismo que faz com que a grande mídia ataque Sarney é um pobre ingênuo. Os problemas não começaram ontem, nem Sarney se tornou um oligarca poderoso a partir de 2009. Em compensação, a campanha de Dilma começa amanhã, e os sinais de estratégia estão começando a aparecer (não por acaso surgem agora os "revisionismos" da Ditadura: "ditabranda", ficha criminal falsa, etc). É justamente nesse momento que cai, parcialmente, a cobertura de Sarney.
Então Lula está certo em poupá-lo? É claro que não. Lula está sendo, mais do que nunca, maquiavélico. Aliás, desde o início do segundo mandato. Em troca do aliado poderoso que é o PMDB, Lula cede na moralidade. Puro cálculo político. As declarações de Lula visivelmente não são sinceras; ele apenas evitar expor o aliado para não perder capital político. Já escrevi por aqui e reitero que se trata de uma grave lacuna e um dos principais defeitos do Governo Lula, ao lado da política ambiental, a incapacidade de formar uma esfera pública.
Porém é preciso separar as coisas. Uma coisa é a defesa republicana, outra é o moralismo hipócrita e udenista da direita e da mídia. Todas as condutas reprovadas em Lula nada mais são do que reedição da estratégia do PSDB durante seus governos, inclusive o mensalão (cuja fonte no PSDB já foi identificada, embora parcamente ressaltada). Isso não torna Lula melhor, mas não permite que os algozes vociferem hipocritamente contra a corrupção. Discursos contra Sarney de políticos comprometidos até a unha com corrupção seriam algo bizarro, se não fossem trágicos. A indignação seletiva da mídia -- na realidade, muito mais por cálculo político que por ignorância -- é um vexame.
Mas o que me preocupa não é, na realidade, como esses setores desesperados estão reagindo diante da popularidade astronômica de Lula. O que me preocupa é como republicanos, como Fernando Gabeira, e a extrema esquerda, como o PSOL, reagem aos episódios. Na blogosfera há um debate intenso em torno do chamado "gabeirismo" (que seria algo como um moralismo cínico) (conferir por exemplo aqui e aqui). Na sua cruzada pela ética (que inicialmente me pareceu salutar), Gabeira acaba se aliando aos setores mais podres da política e, com isso, mostrando-se ingênuo ou mal-intencionado. Porque o que provoca a corrupção endêmica e epidêmica no Brasil não é o mau-caráter dos brasileiros, mas a submissão do público ao privado, ou seja, o domínio de oligarquias sobre a esfera pública (das quais Sarney é apenas uma um tanto "arcaica" em relação a outras que souberam se disfarçar melhor).
A posição da extrema esquerda é ainda mais indefensável: ao criticarem moralisticamente a corrupção, dão poder de fogo àqueles que são os seus principais agentes. Aliam-se à direita e, com isso, ao status quo. Justamente eles, os radicais. E o fazem por uma razão: porque não são radicais o suficiente. Se fossem, veriam que a representação brasileira é defeituosa porque as democracias contemporâneas converteram-se em plutocracias moderadas, ou seja, plutocracias em que as oligarquias abrem um pequeno espaço conciliatório para que demandas ocasionais da vida nua penetrem. E nisso Lula não tocou (o Bolsa-Família -- programa que sempre elogio -- é o reflexo perfeito da situação). E, apesar disso, a crítica é sempre superficial, moralista e reprodutora da mesma retórica da direita.
A falta de vontade política na formação de uma esfera pública no Brasil a partir de Lula pode ser atribuída ao cálculo político, mais uma vez. Por uma questão estratégica (ou falta de um "kairós"), Lula optou por ser conciliador o não tocar no status quo (aliás, o ponto nevrálgico do sistema, como bem apontou Alexandre Nodari, seria a questão fundiária), focando em elaborar programas que atinjam a vida nua sem tocar realmente nas estruturas desiguais do país e seus respectivos regimes de poder. Isso poderia ser matéria de crítica da extrema esquerda, e não a vagueza do "neoliberalismo" (com a eterna nostalgia do "Estado grande") ou a corrupção (com seu enfoque moralista). Mas, infelizmente, a extrema esquerda apenas continua dando gás para que os donos do poder voltem para suas confortáveis cadeiras, com os aplausos da grande mídia (que, aliás, é dominada por oligarquias).

...

O risco é que a tal "esfera pública" -- conceito não por acaso habermasiano -- não seja nada além de uma piada. Foucault talvez esteja rindo no seu caixão essa hora. É possível que a espera pelo esfera pública seja da mesma natureza daquela peça de Beckett.

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quarta-feira, julho 22, 2009


POR QUE ESTOURAM TANTOS ESCÂNDALOS NO GOVERNO YEDA?

APENAS UM INGÊNUO acreditaria que a razão pela qual explodem dia após dia os escândalos de corrupção no Governo Yeda porque, efetivamente, há mais corrupção. Pode até ser que haja mais corrupção. Mas essa não é a razão pela qual explodem tais escândalos. A incapacidade de ler corretamente a realidade política do RS se deve ao maniqueísmo de alguns e denuncismo de outros. Já temos uma blogosfera relativamente consolidada no RS, além da mídia tradicional, mas a maioria dos analistas não consegue escapar de ficar na posição de esquerda-denunciante, de um lado, ou de denuncio-todo-mundo, de outro. E, ainda em outro flanco, a mídia tradicional, que visivelmente protege o Governo, apesar de a Governadora reclamar (por ela, a cobertura deveria ser totalmente esquizofrênica, e não parcialmente).
Para analisar a situação do RS, é preciso em primeiro lugar sinalar algumas características da nossa política. Primeiro, gaúcho não tolera mudança de partido. Por isso, DEM, PSDB e PPS (a oposição nacional) são tão fracos no Estado. Ao mesmo tempo, partidos sem expressão nacional têm papel importante por aqui. É o caso de PDT, PTB, PP -- todos em plena decadência nacional, mas decisivos por aqui. O PP é ainda a ARENA, congregando a extrema direita, num papel equivalente ao DEM em cenário nacional (ex. Turra, Bernardi). O PMDB, por sua vez, é o centro-direita, equivalente ao PSDB no âmbito nacional. Tem para si um eleitorado democrata-conservador que antes compunha o MDB (ex. Simon, Fogaça, Rigotto, Schirmer). E, do outro lado, o PT, formado por ex-comunistas que, durante a Ditadura Militar, foram jogados para a clandestinidade. Assim se desenha o mapa partidário-ideológico do Estado, bem distinto do cenário nacional. (Há várias outras nuances que não posso abordar.)
Segundo: analisar o panorama político. A realidade política do RS divide o poder em apenas dois blocos: um agrupamento-de-sempre e o PT (ou "A Frente Popular"). Quem realmente governa o Estado é um conglomerado de partidos que agrupa PMDB, PPS, PTB, PDT, PSDB, PP e DEM -- todos eles. A principal estratégia político-eleitoral é o assistencialismo e o fisiologismo (que abrange também trocas com outros poderes). Esse emaranhado forma realmente o núcleo de poder do Estado -- capaz de neutralizar, por exemplo, o Governo Olívio (rejeitando todas as leis propostas ou derrubando vetos) ou agora Yeda. Até bem pouco tempo, existia inclusive a "verba assistencial" (!) na Assembléia para os deputados. No mesmo sentido entra a discussão acerca dos albergues. A formação da legitimidade popular se dá dos municípios para o Estado, sempre partindo do assistencialismo direto, de um lado, e da conciliação, de outro. Por isso, são raros os enfrentamentos com o empresariado (outro núcleo de poder) e com a mídia (de perfil, via de regra, até mais conservador). Via de regra, forma-se uma gigantesca aliança -- por vezes abalada (ex., em aumentos de impostos) -- mas sólida o suficiente para enfrentar qualquer resistência.
O que Yeda fez foi romper com o pacto político da direita conciliatória. Não como Olívio, por óbvio, que foi para a extrema esquerda. Mas em um sentido diferente.
Primeiro, pela sua personalidade extremamente autoritária, Yeda foi aos poucos se incapacitando para o diálogo. Pessoa que visível difícil trato e impregnada de estrelismo, acabou se indispondo pessoalmente com grande parte dos aliados. (Yeda chegou a ensaiar um acordo com o núcleo de poder, mas fracassou.)
Segundo, porque Yeda cometeu um erro político-estratégico: acreditou que o setor do empresariado, representado ainda precariamente pelo DEM (a direita empresarial ainda perde para a direita rural do PP no RS -- a derrota de Britto é a prova), seria capaz de sustentá-la no Governo. O golpe pessoal - e Yeda não hesita em o tratar como tal -- de Paulo Feijó desarticulou, ao mesmo tempo, toda estratégia política da Governadora. Mantendo uma inesperada coerência, Feijó rompeu com Yeda e quebrou suas pernas.
Eugenio Raúl Zaffaroni nos ensina, há muito tempo, que, quando o sistema penal foge do flanco seletivo em relação à sua clientela tradicional e cai sobre os poderosos, estamos diante do fenômeno da "falta de cobertura". É exatamente isso que está ocorrendo no RS. É óbvio que a corrupção não aumentou drasticamente, o que está ocorrendo é uma dupla falta de cobertura de Yeda. De um lado, pela presença do PT no Governo Federal, que não tem, por óbvio, nenhuma boa vontade em esconder ou evitar investigações contra o Governo do Estado. De outro, a Governadora desafiou -- e perdeu -- várias vezes para esse verdadeiro núcleo de poder que governa o RS há muito tempo. Ao usar o autoritarismo e adotar até algumas medidas elogiáveis (se desfez de uma pilha significativa de CCs), Yeda desestrututou o pacto fisiológico que estava em vigor no RS, fazendo cair sua cobertura pelos "conciliadores" da direita.
Não é coincidência que é justamente nesse momento que a Zero Hora volte a falar dos "radicalismos" e da necessidade de "conciliação". Com esse movimento "pacificador", a ZH avoca para si a glória do consenso e faz retomar o poder o grupo que tradicionalmente governa o RS, apenas trocando a cabeça de chapa. Ao mesmo tempo, isola a esquerda enquanto "radical" e defenestra a Governadora, cuja atuação política é deplorável. A cautela do movimento se deve a um temor em relação ao avanço da esquerda caso os ataques à Governadora passem certo limite. Por isso, a estratégia é oscilante, ora noticiando escândalos, ora os suavizando. Ao mesmo tempo, nossa mídia local planeja, sem dúvida alguma, a ascensão de uma "terceira via", provavelmente nas figuras de José Fogaça ou Germano Rigotto.
Que lê somepills sabia que isso iria acontecer. Basta consultar os arquivos, digitando "Yeda", e ver que desde o início minha análise sempre foi essa.

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terça-feira, julho 21, 2009

O que não vai.

Conversa inocente. Papo pra lá, papo pra cá. Despretensão. Falar sobre o nada: conversa em grau zero. Como se estivéssemos zapeando, de um lado pro outro. De CDs virgens ao mau tempo. Apenas para passar o tempo, foram condenados a estar juntos por um tempo. O destino empurrou-os. Ela acende um cigarro; ele acende outro. Tudo certo. Uma cerveja? Por que não? Afinal, estavam ali para não fazer nada mesmo. Ele só estava ali porque era preguiçoso, não foi com os outros que vão lá fazer exercícios. Vamos? Vamos.
Uma lata, duas, três; dois cigarros, quatro, cinco. O tempo vai passando. Conversa ainda e sempre em grau zero: como sair disso? Impossível. E nem desejável. A intimidade é algo que se conquista, não se adquire imediatamente. Sabiam disso? É provável. Algo coisa passa entre eles; nada que possa ser tido como algo mais que uma simpatia, talvez uma cumplicidade estivesse por ali, nascendo, irrompendo, saindo do casulo. Nada que pudesse ser tido como grande afeto. Apenas uma brincadeira, uma certa correspondência, a capacidade de sentir que o outro está ali, e não em outro lugar. Pura coincidência, risadas, papo furado, cigarros, cerveja. Nada além disso. Estavam ali apenas esperando. O que mesmo? Ah, sim. Eles.
Estranhamente, a coisa fluiu. Quando eles voltaram, não sentiu um alívio do suposto desconforto de estar ali conversando em grau zero. Na realidade, sentiu um desprazer, certa insatisfação com as circunstâncias. Gostaria de perguntar já naquele momento exato: “não tens uma cópia exata de ti mesma para mim?”, mas ainda não tinha intimidade suficiente. E, no entanto, algo estranho já se dava por ali.
Ela também gostou dele. Não do mesmo jeito, talvez. Gostou do papo, da companhia, da inteligência. Sentiu que ele tinha algo diferente, era um pouco mais interessante que a média. Só que profundidade não é tudo; estava com o outro e era bom. Não tinha vontade de nada. Nada mais que uma boa conversa, vontade de conversar de novo, poder falar sobre alguma coisa mais específica.
Mais tarde, conversaram de novo. Dessa vez, foi sobre alguma coisa. Rock, mulheres, política, alguma coisa do gênero. O assunto era delicioso, fluía delícia. Opiniões convergentes; divergentes do geral. Afinal, tem coisa mais tediosa que o comum? Não dá para agüentar esses monótonos.
E, dali em diante, já estavam amigos.

Sentiu imediatamente a violência de uma sensação que não o abandonaria jamais. Daquele dia em diante, todos os dias seriam de incerteza. Pois o trágico é que, certamente, as coisas não se encaminhariam na única direção em que a possível e perene dúvida poderia se extinguir. Ao contrário: elas caminhavam perfeitamente em sentido oposto. Perdeu-se. Perdeu-se em si mesmo naquele momento. Sentiu-se guiado por forças que o atravessavam e não pertenciam ao seu domínio. Tudo cruel demais e para o resto da vida.
Ela apenas desviou o olhar. É possível que tenha sentido um mal-estar. Possível, mas apenas possível. Pode também ter simplesmente permanecido na sua ingenuidade de navalha, contribuindo para o processo inevitável de dilaceração que jamais, jamais cicatriza. Daquele dia em diante, teria que carregar consigo não apenas uma cicatriz – cicatrizes são marcas inofensivas que registram a passagem do tempo na carne –; carregaria, isso sim, uma ferida aberta que poderia alternar sangramentos virulentos com outros mais sutis, mas jamais seria fechada. Feridas não são cicatrizes, não são meras rasguras esteticamente desagradáveis; são golpes que permanentemente provocam a dor. A ferida é a experiência da dor que não se deixa extinguir.
Como? Em tão inocente momento? Seria ele apenas mais um ingênuo? Não existe essa tal de ferida. Tudo não passa de poesia. Na vida, é inofensivo. A sabedoria popular talvez ensine que o tempo a tudo leva, que as coisas simplesmente passam, que a vida segue. Pode ser. Mas quem se apaixonou sabe que jamais cicatriza. As coisas são para vida inteira. “Quando se esquece um amor?” “Nunca” – é a única resposta verdadeira. A verdade é que podemos não viver escravos da dúvida, mas certamente em algum lugar ela irá para sempre se esconder – retornar, golpear, recordar.
Certamente éramos mais jovens. Mas não são por acaso as coisas mais antigas aquelas que nos são mais importantes? Maldição da memória, que nos trucida por uma dilaceração visceral, embora intermitente. A paixão é um veneno que se estabelece e, uma vez lá, inevitavelmente corrói. Inevitavelmente.

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segunda-feira, julho 20, 2009

Duas tentativas. Fracassos.
Não consigo escrever um post.

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sábado, julho 18, 2009

UM MODELO QUE CAMINHA PARA O COLAPSO

Minha namorada me deu uma carona até minha casa hoje. Ela mora no Bom Fim, e precisamos só andar um pouco pela Protásio Alves para alcançar o destino. Mas fomos surpreendidos por alguns minutos (bem poucos) de espera porque se realizava uma obra em uma pista, causando congestionamento. "É impressionante como qualquer coisa gera engarrafamento", me diz ela. E justamente sobre isso que venho pensando há tempos.
Gilles Deleuze e Félix Guattari escreveram seus "Mil Platôs" com o subtítulo "Capitalismo e Esquizofrenia". Acho interessante a associação entre nosso sistema econômico pretensamente racional e o comprometimento psíquico. Porque, de fato, é evidente, a olho nu, que o mundo que vivemos é insustentável. É evidente que caminhamos para o colapso. O trânsito é só o maior sintoma.
O Governo Federal estimula a indústria automobilística retirando impostos, fazendo com que mais pessoas comprem carros. Diminui os juros para facilitar o crédito. E aí? Temos ruas para todos esses carros andarem? Temos atmosfera para aguentar a emissão de gás carbônico? Temos paciência para aguentar quilômetros de engarrafamentos? Temos hospitais para acolher todas as vítimas de acidentes? Se o princípio dessa fase do capitalismo é o consumo, e não mais a produção, parece que caminhamos lentamente para o colapso do sistema. E isso não é problema de um governo, mas de uma racionalidade que esse governo compactua (já sinalei várias vezes por aqui que a política ambiental do governo, por exemplo, é ridícula).
Em uma passagem pouco notada pelos seus leitores, Ricardo Timm de Souza já mostrava como essa razão totalitária era insustentável, trazendo o único fato bruto da escassez de água que se avizinha no futuro (ler em "Totalidade e Desagregação"). Como podemos continuar caminhando com um modelo político-econômico que, a longo prazo, não nos conduz para outro lugar senão para a nossa destruição? As receitas dos economistas são receitas totalmente irracionais, apesar das suas belas estatísticas e termos técnicos. Como frear isso? Agamben, num parágrafo recentemente lido por mim e Juriká no nosso grupo de estudos, já anotava que a religião capitalista, por não prever esperança ou redenção, mas a culpa, vê como único caminho desesperado a destruição do mundo.
Não sei se um dia o homem será capaz de criar um sistema econômico racional. O capitalismo não foi criado por uma mente, como certa vez anotou o irritante conservador Ferreira Gullar, mas simplesmente surgiu dos fatos. Essa seria sua diferença em relação ao socialismo. Porém eu creio que -- além das belas idéias -- os fatos começam a caminhar no sentido da desagregração dessa totalidade. O processo de abstração cada vez maior do capital vai levar à sua destruição (faz anos que tenho essa intuição). De tão virtual, poderá ser eliminado com um clique. A destruição da propriedade poderá ser realizada sem traumas porque essa propriedade terá se desconectado do mundo em um nível que nenhum suporte físico mais a lastreará. E nós vivemos - não custa lembrar - no mundo real, no mundo bruto, é esse que sustenta o virtual. A própria internet, de outro lado, já é um pouco realização de um novo modo de trocas, gratuito e comum, como ocorre em quantidade cada vez maior com músicas, filmes, livros e assim por diante. Na internet nós experimentamos o dom e o comum, para desespero da indústria dos direitos autorais. A demonização da pirataria é uma estratégia fadada ao fracasso. Em pouco tempos, os piratas serão agentes de uma revolução surpreendente nas formas de troca e mesmo de sociabilidade. O estigma pirata se transformará em emblema. E outras formas de comunicação, não sujeitas ao controle do capital sobre a mídia, se alastrarão em tendência vertiginosa, sem qualquer possibilidade de que a informação possa ser controlada, como hoje precariamente é. Nesse momento, haverá uma luta decisiva em torno do estado de exceção na internet, pois o controle irá reivindicar uma série de restrições e retormar o funcionamento centralizado do sistema. Esse será o instante da revolução. Nós seremos os vírus.

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sexta-feira, julho 17, 2009





Claudia Cardinale.

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TRABALHO DE AUTUORI COMEÇA A APARECER

NA MÍDIA DO CENTRO DO PAÍS, e talvez por provocação do ótimo Tostão e do bizonho Calazans, discute-se a importância do treinador para a equipe. Eu dou meu pitaco: é vital. Como todo respeito que merece Tostão, por melhores que sejam os jogadores, sem uma equipe eles não engrenam. E formar uma equipe é justamente o trabalho do treinador. Organizar os jogadores em campo é uma tarefa árdua, que exige criatividade, visão e conhecimento.
Por incrível que pareça, são poucos os treinadores no Brasil que sabem fazer o seu trabalho: organizar uma equipe. Quantos nomes péssimos não saltam de um clube a outro enganando: Geninho, Nelsinho, Joel Santana, Jair Picerni, Vadão e tantos outros não conseguem sequer ter uma espinha dorsal nas suas equipes. Por isso técnicos médios como Celso Roth, Cuca, Caio Jr e Leão conseguem ter algum destaque no cenário nacional, apesar de terem claros defeitos.
O Grêmio de Roth era organizado, mas tinha um defeito crônico: não tocava a bola. A bola fugia em segundos dos pés gremistas. Era ou lançamento longo, ou cruzamento já da intermediária. Os atacantes minguavam e os meios tinham que partir para a jogada individual, não raro cruzando todo campo com a bola. Embora organizado defensivamente, o Grêmio não conseguia atacar com consistência. Não existia tabela, aproximação, não se conseguia nunca "cozinhar" o adversário.
O trabalho de Autuori trataria de mudar isso. E já está mudando. Começam a ficar visíveis as aproximações, tabelas, ocupações de espaço -- enfim, o Grêmio começa a jogar futebol. Resultado: não só os meias subiram de produção, como também empurraram para cima os laterais (Fábio Santos) e os atacantes começaram a desencantar. Estamos evoluindo.

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quinta-feira, julho 16, 2009

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quarta-feira, julho 15, 2009

VIDAS SECAS

"- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
- Você é um bicho, Fabiano."

Sim, estou pensando em aproveitar isso, sim.

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terça-feira, julho 14, 2009

LEITURAS DE FÉRIAS




-
Graciliano Ramos, "Vidas Secas";
- Ruben Fonseca, "A Grande Arte";
- Paul Auster, "A Trilogia de Nova York";
- Primo Levi, "É isto um homem?"



- J. Saer, "As Nuvens";
- Franz Kafka, "Na colônia penal/O veredito";
- René Girard, "A violência e o sagrado";
- Clifford Geertz, "Nova luz sobre a antropologia";


- Marcel Mauss, "Ensaio sobre a dádiva".

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segunda-feira, julho 13, 2009








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ACABAR COM O SENADO?

NÃO SOU NENHUM ENTUSIASTA da democracia representativa. Por isso, até simpatizo quando vejo movimentos pela extinção do Senado em defesa do unicameralismo. Porém fico pensando: será a melhor solução?
Meu raciocínio é simplesmente o seguinte: se a representação fosse estritamente linear, ou seja, atendesse exatamente o número de eleitores e manifestasse como um espelho o Brasil, os estados muito pobres acabariam completamente sem voz no Congresso. Ficaríamos com uma representação quase que completamente guiada pelos interesses do centro, especialmente São Paulo, e pouco poderiam falar Acre, Paraíba e Roraima, por exemplo. A cena do parlamento reproduziria a mesma violência que sempre deixa o marginal sem fala, à medida que parte da suposta igualdade. Nesse sentido, talvez o Senado, em um quadro de democracia representativa, seja um mal necessário.

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sábado, julho 11, 2009


ALTER EGO, "ANTES DO CÉU"

O ROCK BRASILEIRO não é das preferências da casa. Pouca coisa se salva no imbróglio de irrelevância, pastiche e pouca ousadia na terra brasilis. Salvo um Los Hermanos aqui, um Mutantes lá, as bandas brasileiras oscilam entre um pop insosso e um rock humorístico, incapazes de enfrentar suas inspirações do Norte.
Porém esse definitivamente não é o caso da Alter Ego. Comodismo, pieguice, anacronismo, bunda-molice e bom-mocismo-encomendado-para-o-Faustão são tudo que não se encontra por aqui. Nenhum espaço para esse tipo de concessões: apenas o bom veneno contagiante do velho rock'n'roll. Nada além daquilo que contamina epidemicamente as gerações de jovens desde os anos 50: energia, atitude, vontade de viver intensamente e sem limites a aventura que é a vida. Nenhum medo. Nenhuma mentira. Nenhuma restrição. Apenas tudo como deve ser: vivido até o último suspiro, gritado, cantado, dançado, festejado -- como se saltássemos sobre as fagulhas das chamas do inferno numa festa que vai até o fim da eternidade. Dia de comemorar a hecatombe da vida.
É esse ar de intensidade, sangue borbulhante e energia vital que se sente ao longo de toda obra. As guitarras atravessam a audição como relâmpagos cruzando o céu, rasgando as canções até se transformarem em tempestades povoando todo espaço do horizonte. Da paz celestial até a tempestade que destrói tudo, e disso de volta ao arco-íris da psicodelia que faz relaxar, rir, alucina a existência amarga do dia-a-dia. Ouvir Alter Ego é voltar ao sonho da vida sem hesitação; sem medo, sem receio, mergulhado no abismo do incerto para encontrar lá o que realmente importa -- alheio ao nosso mundo de burocracia, hipocrisia e cinismo. O sonho, de novo, e todo o risco que ele comporta. Boemia, corredores sujos, cerveja, cigarro, barro de banheiro, ressaca, sexo casual, alucinações, viagens, promessas, brigas, esperança, desejo, vinganças -- toda essa vida genuinamente contracultural na risada de quem ainda ousa se divertir.
A melodia é a matéria-prima onde a sonoridade trabalha. Riffs, linhas gordas de baixo, gritos e refrões grudentos vão povoando as canções uma-a-uma, caprichosamente reunidas em um petardo do início ao fim. Dos rockões clássicos como "Muié Lôca", "O Vingador", "Chega" e "Sexo Droga de rock'n'roll" até aventuras mais psicodélicas como "Depois da Tempestade", "Nem tudo vai morrer", "Quando" e "Acomodado", passando por baladas como "Noites Claras" e "Meu lugar" -- a inspiração está no rock'n'roll tradicional: Rolling Stones, Oasis, The Verve, Led Zeppelin, Jet, Kings of Leon. Da energia ao repouso, do repouso à alucinação, da alucinação até mais loucura. "Muié Lôca" e "O Vingador" -- de um blues rock a la Stones até a beira do hard rock -- são poderosas doses de red bull direto no cérebro; "Sexo droga de rock'n'roll" é a própria pulsação da transgressão, brincando com os limites da santíssima trindade que ilumina (ou escurece) a vida dos que compartilham da paixão pela religião de Jimmy Hendrix, Johnny Rotten e Lennon. "Acomodado" é a passagem para o etéreo; "Depois da tempestade", viagem a um mundo distante. "Meu lugar" é espécie de celebração da volta à ingenuidade que convém à vida; "Nem tudo vai morrer", bem, essa eu acho a melhor do álbum, pela inteligência e surpresa que pode gerar aos que prestam atenção na genialidade psicodélica que contém. Enquanto os violões se encontram, vamos embarcando em outra dimensão. "Nada escapa" tem dos melhores versos dos últimos tempos, e que bem explica de onde vêm as coisas: "nada escapa aos olhos de quem enxerga na madrugada".
A Alter Ego não precisa esperar mais nada, já está pronta para tudo. Não apenas porque faz músicas boas, nem porque o disco soa como um oásis no paupérrimo panorama nacional, nem mesmo porque bebe em fontes sacras do rock e não deixa nada a dever. Não precisa esperar porque sabe viver -- e é essa vida pulsante, intensa, rebelde e indomável que se sente ao longo de "Antes do Céu".

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sexta-feira, julho 10, 2009

FILHOS: NÃO!

APESAR DOS COMENTÁRIOS DO FABS, que foram bem interessantes (e desconfirmaram algumas das minhas "certezas"), tenho que continuar minhas reflexões sobre a vida pessoal e seus tabus. Um deles é o quanto ainda é desconcertante para as pessoas lidar com quem não quer ter filhos.
ATENÇÃO: eu não tenho NADA contra quem quer ter filhos; ao contrário, é uma coisa bem bonita. Mas nós não estamos no meio de uma hecatombe em que o gênero humano está prestes a desaparecer e eu me nego a engravidar a Regina Casé. O mundo não vai acabar se eu não me reproduzir. As coisas continuarão seguindo seu fluxo totalmente normal, sem qualquer problema de escassez humana. Tem gente pra burro para nascer.
Também não tenho nada contra crianças. Não sou muito bobão e brincalhão, nem acho bebês lindos (normalmente são feios). Tampouco tenho muita paciência. Mas as crianças não precisam de nós, adultos, para se divertir. Disse Benjamin uma vez -- sob o efeito de cânhamo -- que o que mais estranham as crianças nos adultos é sua falta de magia. Então, para elas basta que não as incomodemos. Elas sabem brincar, algo que perdemos quando perdemos nossa inocência. Então que continuem existindo e recheando de magia nosso mundo.
O que é estranho é como uma opção perfeitamente natural, feita com base em uma escolha de vida, pode ainda causar tanto choque. Volta e meia, o sujeito é visto com estranheza, chamado de egoísta, amaldiçoado pela diferença. A questão é, na realidade, muito simples: não ter filhos não é uma atitude egoísta porque se não está privando ninguém de nada. O suposto filho simplesmente não existe. Portanto, é uma impossibilidade não só lógica, mas fática, de que alguém saia perdendo. Esse "alguém" não existe. O egoísmo só pode existir se alguém está sendo privado de algo. Reitero: esse "alguém" não existe.
Nada contra as pessoas que querem ter filhos, mas tê-los significa uma série de restrições que não estou disposto a comprar. E ninguém perde nada com isso. O "outro" - o suposto filho - não existe. Eu sei que tem muita gente que só consegue enxergar sua vida a partir da imagem da família burguesa, organizada a partir dos filhos, com casinha, esposa, tomando café e levando as crianças para o colégio, saindo para trabalhar e depois voltando cansado. BELEZA. É a opção de vocês. Não queiram dizer que eu preciso aderir a isso. Porque eu tenho outros planos. Porque eu vejo sentido na vida sem ter casinha, crianças e sucrilhos. Porque eu acho que tem um monte de coisas legais para se viver sem precisar recorrer à relação parental.
Desculpem, mas nunca mais me recuperei da leitura de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", do Machado de Assis. Nunca mais. Desde que li "não deixei a ninguém o legado da nossa miséria", jamais sonhei novamente em ter filhos. Esse mundo é cão demais. E, reitero, porque não custa repetir, não estou prejudicando ninguém na sua não-existência, porque "não existir" não comporta, lógica e faticamente, uma privação. A sensação que temos a esse respeito é sempre uma sensação baseada numa "idéia de filho" dona de uma espessura representacional tão poderosa que parece real. Mas não é.
Claro, o egoísmo pode acontecer se a parceira quer ter filhos. Nesse caso, não vejo bem como equacionar as coisas. Mas é outra coisa distinta. O importante para mim é ressaltar que não há nada, absolutamente NADA, de errado em não ter filhos. Lógico, não? É, mas, pensa bem, tu sempre fica com uma pulga atrás da orelha a respeito. Ligue a vigília já.

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quinta-feira, julho 09, 2009

HUMANO, DEMASIADO HUMANO


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quarta-feira, julho 08, 2009

A FÍSICA VAI NOS DAR TODAS AS RESPOSTAS?

PARA OS ATEUS, como eu, a evolução das ciências é algo extremamente bem-vindo. A cada momento que passa, questões antes sem resposta ganham explicações e nos sentimos menos escravos da transcendência "lá fora", ou seja, daquilo mundo que não é o nosso, pelo qual vivemos com medo durante tantos séculos. A física, particularmente, apresenta respostas para questões essenciais, provocando um desvencilhamento do mundo "sobrenatural".
No domingo, o ótimo colunista Marcelo Gleiser escreveu na Folha de São Paulo um artigo chamado "Consciência Cósmica". Gleiser afirma que tradicionalmente as questões essenciais eram delegadas a explicações sobrenaturais (míticas ou religiosas), mas que, hoje em dia, a ciência as encara. E procura arrolar um primeiro tema, que é o seguinte:

1. O cosmo é único, resultado de uma estrutura matemática que a física teórica vislumbra em raros momentos. Por trás da enorme diversidade das coisas, em particular da matéria e das suas propriedades, existem leis bem determinadas e eternas que ditam desde a existência do Universo ao valor da carga e da massa do elétron.

Se algum dia obtivermos essa teoria unificada, a teoria de tudo, teremos chegado ao ápice da racionalidade, decifrando o código secreto da natureza.

(A "mente de Deus" como Hawking e outros afirmam.) Segundo essa visão, a vida e a mente são acidentais, já que a física e a química têm pouco ou nada a dizer sobre a emergência da vida.

Fiquei pensando nisso que Gleiser escreveu. Será que, se decifrarmos uma "teoria de tudo", teríamos também a "mente de Deus"? É aqui que aparece a ingenuidade epistemológica do cientista.
A Modernidade, desde Descartes, pensou a relação sujeito/objeto, mediada pela razão, como o vínculo fundamental do Eu com o Mundo. As relações internas desse sujeito seriam a "subjetividade". O objeto, para que bem estabelecido o pensamento científico, deveria ser apreendido na sua "pureza", limpo de qualquer dessas interferências "internas", formando assim a "objetividade". (A "subjetividade" é então delegada à psicologia, que por sua vez investigaria objetivamente essas relações internas.) A "objetividade" nos guiaria ao pensamento absoluto, válido independente do tempo e do espaço, quando confrontaríamos as coisas "nuas", ou seja, "puras", sem referência a qualquer interioridade. Por isso a pergunta fundamental da Modernidade sempre foi a pergunta epistemológica.
Pois não é exatamente esse o sonho da "mente de Deus" de Hawking? Encontrar o universo "nu", mapeá-lo para assim controlá-lo, detendo o "pensamento absoluto"? Encontrar a "objetividade última", o último ponto em que o pensamento se desconecta de si mesmo e passa a ser apenas um espelho final do mundo?
Desde Nietzsche até Heidegger e os demais contemporâneos, parece claro que a "objetividade" não esgota o ente. Ou seja, a dimensão "objeto" nada mais é do que uma faceta do ente - uma específica faceta que permite o controlar e medir -- mas jamais esgota a totalidade desse ente. Ao contrário dos esotéricos, que usam bizarramente filosofia e física quântica para inflacionar o sujeito até sua implosão em uma espécie de mônada-solipsista (leia-se: "O Segredo"), todo esforço da filosofia do século XX -- de Bergson a Adorno, de Benjamin a Levinas, de Husserl a Foucault -- foi justamente recuperar essa esfera fora-de-controle do sujeito e mostrar como ela excede a dimensão "objetiva". Sem desmentir a ciência, sem retirá-la do seu papel fundamental, esses filósofos trabalharam no sentido de desfazer a idéia de que o intelecto é o mundo, que chegou ao poderoso ápice em Hegel -- ou, para Heidegger, na "vontade de vontade" de Nietzsche. Separando razão e realidade, o ente retoma sua dignidade e ganha mais faces. Assim, a dimensão sujeito/objeto não perde sua importância, mas sim o lugar fundamental. A epistemologia continua sendo importante, mas não "filosofia primeira".
É por isso que valorizo a obra de Heidegger, apesar das várias críticas possíveis a ele. Heidegger nos ensinou que a dimensão sujeito/objeto não é fundamental porque ela já pressupõe outra relação mais fundamental. Heidegger parte da premissa de que o pensamento não pode partir da pretensão de exceder o tempo e refugiar-se em direção ao absoluto, procurando o infinito. O pensamento precisa, primeiro, pensar-se a si próprio na finitude. Não transbordar a condição temporal, mas assentar-se nela. Ele traz de volta o pensamento ao concreto, ao "aqui embaixo", não em um pensamento que busca cada vez mais se aproximar do absoluto, mas pensamento que pensa a si mesmo enquanto finito. Essa teria sido a fraqueza fundamental da tradição e a razão da destruição da metafísica. Reconhecer que a metafísica deve ser destruída significa circunscrever cada "princípio epocal" (as idéias de Platão, a substância de Aristóteles, o Deus dos medievais, o sujeito de Descartes, a "vontade de vontade" de Nietzsche, etc.) como uma determinada manifestação do Ser, e não como um mero erro que deve ser descartado a cada passo mais próximo do pensamento absoluto. Cada "princípio epocal" corresponde a uma forma finita em que o Ser foi pensado.
Partindo da faticidade, ou seja, do tempo [como certa vez disse o Timm (que não gosta de Heidegger) em sala de aula: "no século XX o tempo se vinga" (basta pensarmos em Rosenzweig, Benjamin, Bergson, Levinas, Derrida, etc.)], nós percebemos que para chegarmos na objetividade partimos de um ponto prévio, uma pré-compreensão do objeto. Essa pré-compreensão indica que já estamos em um solo prévio antes de começarmos a colocar os problemas científicos. Ser é ser-no-mundo. O mundo precede o empilhado de objetos que a ciência arrola. O sujeito não existe sem um mundo (se não tivéssemos mundo, seríamos como nossos irmãos macacos e gorilas). Assim se resolve a complicada e artificial "ponte" entre Eu e o Mundo que a Modernidade tanto pensou como relação entre "sujeito" e "objeto". Ser já é ser-no-mundo; o mundo já está dado, sem ele, não sou sujeito. Sem uma pré-compreensão do ente não chego ao objeto. Sem mundo (sem ser Dasein - "ser-aí") não sou sujeito. Ser é já estar-lançado no mundo. A "tábua rasa" de Descartes é uma ficção. A condição epistemológica é precedida pela condição ontológica -- é derivada.
A teoria de Gleiser parte da ingenuidade de que existiria esse "vocabulário final" que seria o da física. Ele toma a objetividade como originária. O que aconteceria se tivéssemos esse "mapa"? Ora, provavelmente muita coisa. Mas também é provável que, quando nos deparássemos com a descrição física da "mente de Deus", perdêssemos todo mundo. Como assim? Significa que a redução das coisas à sua dimensão objetiva não é capaz de apresentar as "coisas nuas", mas apenas uma apresentação dessas coisas. A descrição científica é apenas uma descrição, não a descrição fundamental. Pode ser a mais apropriada do ponto de vista da verdade como adequação, dentro do jogo de linguagem científico, mas não vai além disso. Uma árvore não deixará de ser uma árvore depois que se identificarem seus elementos físicos (e continuará, por exemplo, podendo ser cantada pelos poetas). A física não é capaz de dar conta integral do "mundo" (embora possa provocar milhares de mudanças nele). Essa dimensão originária e essencial não existe, é como a cebola que se descasca e não tem centro. A própria descrição física nada mais é do que mais uma casca da cebola. É como se disséssemos que o cérebro da mulher tem a reação Z quando vê um homem de pau duro porque o cérebro produz X e Y reações. Isso é parcialmente falso. Por que, afinal, o cérebro produz X e Y exatamente quando o homem está de pau duro, e não em outras circunstâncias? Porque o desejo já transborda da "natureza", já se circunscreve em outra ordem (da linguagem). Do fato de o cérebro produzir X e Y não é possível deduzir isso como causa da reação Z da mulher. Isso é incapaz de explicar porque ocorre só na situação descrita, e não em outras, se o fenômeno é biológico. Ou seja: a neurobiologia jamais será capaz de mapear o humano, assim como a física da "mente de Deus". Não existe centro na cebola.

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terça-feira, julho 07, 2009

NOVOS BLOGS ADICIONADOS:

-- TPM, Manifestações criativas de impulsos homicidas, por A. Behegaray;
-- Homo Criminalis, por Salo de Carvalho;
-- Distropia, por Fabricio Pontin, Marcos Fanton e outros;
-- Céu da Boca, um universo escrito com batom, por Majoriebier;
-- Brasília, eu vi, por Leandro Fortes;
-- Professor Hariovaldo Almeida Prado, por Hariovaldo;
-- RS Urgente (novo endereço), por Marco Weissheimer;
-- Ferréz, por Ferréz;
-- O Reduto, por Felipe;
-- Luis Nassif, por Luis Nassif;
-- Casa Warat, por Luis Alberto Warat;
-- Alexandre Morais da Rosa, por Alexandre Moraes da Rosa;
-- Criminologia e etc., por Aline Pecharki;
-- Tudo vira hipótese, por Cristiane Russomano Freire.

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domingo, julho 05, 2009


NOSSO CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES

COMENTO muito pouco por aqui sobre relações. Os papos preferidos do somepills - pelo menos nos últimos dois ou três anos - têm sido mesmo política, futebol, filosofia, criminologia, música, cinema, livros. Talvez porque eu me sinta bastante inseguro com respeito ao tema. Provavelmente porque acredito saber bem pouco. Mas, de vez em quando, dou uma pitada.
Fico impressionado como nós somos ainda conservadores em termos de relações. Dos meus conhecidos -- amigos e amigas -- não conheço unzinho/umazinha que aceite formas não-clássicas de relação. Todos seguem o mesmo estilo: namoro, casamento, monogamia, ciúmes, projetos de filhos e casa comum. Interessante, pois a maioria dos amigos e amigas, embora não exatamente "exóticos", são pessoas não-convencionais (dá para imaginar a minha incapacidade de relacionamento com gente de fala de "cidadão de bem", por exemplo). Por que raios todos nós seguimos o mesmo modelo?
É engraçado. Provavelmente propor algo do gênero pode custar bem caro. O outro ou a outra pode se ofender. "Propões isso porque achas que não sou boa o suficiente?". "Tu quer dar para outros magrões?". Não creio que isso tenha a ver com machismo meu. Porque, na realidade nua e crua, essa da qual nós hipocritamente não conseguimos falar, minhas amigas também tiveram probleminhas bem significativos com as instituições tradicionais. Não ponho nem um centímetro a mais de mão no fogo pelas mulheres em relação a temas como infidelidade, egoísmo, ciúmes ou mentiras. A forma é normalmente diversa. Mas elas também fazem tudo isso. Ontem eu andava de carro com minha irmã e uma amiga e ela falava no telefone: "ah, amiga, estás louquinha para pular a cerquinha... cerquinha, cerquinha!". É igualzinho.
Lá vou eu com uma afirmativa forte: todas as pessoas que conheço já se envolveram com outras pessoas enquanto estavam namorando. Os mais insuspeitos; as mais fiéis. Isso significa que têm mau caráter? Não creio. A maioria fraquejou. Nem todos ou todas, claro. Alguns foram bastante fdps. Mas a maioria absoluta sucumbiu ao desejo, não resistiu. Continou amando o namorado ou a namorada, se relacionando bem, mas não resistiu ao desejo. Mas toda vez que eu pergunto para eles e elas por que não conseguimos pensar em outro tipo de relação, ou quando afirmo que todo mundo trai, a resposta é a mesma: nem vem querer mexer nisso. "Não tem como". "Impossível". "Só funciona assim". "Se descobrir, paciência, acaba. Se não descobrir, deixa assim". "Essas coisas têm que ficar escondidas".
Entendo o medo. Entendo porque compartilho. Sou bem conservador também. Não admito infidelidade, por exemplo. Mas por que raios -- alguém me explique, please -- se 99,99% dos meus amigos e amigas traíram, e não fizeram de sacanagem, nós não chegamos à conclusão de que as regras são um pouquinho irracionais? Não sei explicar. Não consigo admitir a possibilidade de a minha namorada com outro. Mas isso é uma irracionalidade minha? Meus amigos já ficam bravos comigo só porque toco no assunto. Apanhei verbalmente de mais de cinco magrões porque afirmei que digo para minha namorada que todo mundo trai. Eles são radicalmente contra dizer essa verdade. Mas eu disse: todo mundo. Logo, ela também pode me trair (espero que não). Fato. "Ah, mas tu estás afirmando algo que ela não tinha pensado". HAHAHA! Vai ser ingênuo assim lá na Arábia Saudita, amiguinho. Um dos principais defeitos do homem é seguir aquele ditado que diz que "amigo de mulher é cabelereiro". Quem pensa isso só pode ser burro. Homem que não tem amigas não entende nada de mulher; não entendendo, é um homem de merda para elas. (Não apenas meus amigos; tenho certeza que a minha namorada também detesta que eu escreva ou fale sobre essas coisas.)
Uma pergunta que tenho feito e a ausência de resposta é sintomática: é possível uma ética - por exemplo, a ética da alteridade - na relação? Tenho sinceras dúvidas. A leitura de Bauman do "amor líquido", por exemplo, não é uma coisa meio ingênua, conservadora? Será que Sade não sabia mais sobre isso que Bauman sabe? (Vou deixar isso para outro post.)
Não é estranho que entre meus amigos não-convencionais não tenha nenhunzinho que não queira ter filhos? Ou que queira morar em casas separadas? Ou que aceite a infidelidade sob certas condições? Ou que... não importa: o que importa é a ausência de fórmulas novas. vivemos na ditadura de uma fórmula de relação. E isso me irrita. Pois todas as ditaduras e totalidades me irritam. Toda sacralização da instituição é vexatória. E eu digo: nada é menos profanado hoje em dia que a relação.

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sexta-feira, julho 03, 2009

É PROIBIDO SONHAR

CONTARDO CALLIGARIS, comentando as últimas pesquisas realizadas com jovens sobre a sua visão da vida em geral pela Folhateen, chamava atenção para o fato de que estamos diante de uma geração de "sonhos baixos", burocrata, incapaz de se aproximar de grandes projetos, almejando apenas um bom e estável emprego e se definindo, predominantemente, "de direita".
Parece que o grande sonho do pensamento hegemônico na década de 80 se consumou. A minha geração, de fato, é incapaz de sonhar. Perdemos o direito de sonhar. Admitir utopias virou ofensa. Todo interlocutor que quer atirar no discurso alheio afirma: "isso é utópico!". Ou as pessoas se desculpam: "sei que é meio utópico, mas...". Afirmar algo diferente do insuportável cotidiano virou motivo de chacota ou uma piedosa consideração. Desde quando perdemos a capacidade de pensar as possibilidades de um lugar diferente do nosso? A roda do tempo parou de girar? Paradoxalmente, foi o último profeta contemporâneo que decretou: "the dream is over".
Os anos 80 e 90 se aproveitaram do vazio da frustração dos sonhos messiânicos da contracultura. Com um indivíduo desiludido, mas ao mesmo tempo livre das regras tradicionais (portanto, de todas as amarras), pôde se afirmar o tipo de racionalidade que hoje é predominante: o cinismo. "Sei que é errado, mas todo mundo faz". "É um absurdo, mas sempre foi e será assim". "Teremos sempre que conviver com injustiça". "Isso é pensamento de carola". "Bonito seria esse gesto, mas, como ninguém faz, eu também não faço". "Esse pensamento é absurdo, totalmente utópico". "Deixa de ser bobo". "Eles se fazem de coitados". Frases predominantes na minha "pragmática" geração-X, talvez ainda mais poderosas hoje em dia. Pensar a diferença - portanto, pensar - se transformou em algo insuportável. Ofensivo. Dá raiva nas pessoas (mesmo!). É proibido pensar o bem ou a felicidade; é só o cinismo e o cada-um-por-si que vigora. Quem ousa discordar é um hipócrita. Mesmo que não seja. Ou é a figura mais ofensiva de todas: o "ingênuo". (Ingênuo é quem rejeita o cinismo e a perversidade da nossa época.)
Acho triste isso. Claro, muito foi em razão de circunstâncias políticas contingentes. A queda do Muro de Berlim foi um golpe estonteante na esquerda. Não é "moda" ser de esquerda. Fórum Social Mundial é coisa daqueles "bichos-grilo-fumadores-de-maconha" que não se confundem conosco, os "realistas" (cínicos). (Diga-se de passagem que esse bicho-grilo e sua maconha são muito menos nocivos que alguns empresários que ganham prêmios e são defendidos por teorias políticas conciliatórias.) Os ainda resistentes à direita foram para o liberalismo político, defendendo no máximo uma social-democracia bem-comportada (ou a sacrossanta "Constituição Dirigente"). Questionar o modelo liberal do contrato social, democracia representativa e império da lei virou algo quase "irracional", senão de "dinossauro". Outros resolveram migrar para a direita mesmo e ficar bem engravatados no seu atuarialismo blasé. E outros, finalmente, foram para o fascismo. "Tem que matar tudo!"
Já é hora de virar o jogo. Obama pode ter mil problemas, mas sua eleição representou uma espécie de rejeição de modelo cínico de política (a chamada "realpolitik"). Não dá para acusar o presidente norte-americano de não ser alguém que atua com princípios, ainda que se discorde deles (e isso desvincula princípios de sectarismo ou fanatismo). É preciso que voltemos a sonhar. A tragédia cotidiana não é inevitável. É pura contingência. Pensadores duros como Foucault, Agamben e Bauman não cansa(ra)m de afirmar: nossas análises não são pessimistas; ao contrário, mostram a contingência das estruturas que produzem infelicidade e a sua reversibilidade. Por que ser utópico virou ofensa? A utopia não é o que nos impulsiona em direção ao Novo? Se o tempo não parou, o Novo continua sendo possível. E, apesar de certo pensamento de "fim da história" ainda hegemônico na mídia (em vias de declínio -- tanto essa "razão ardilosa" quanto a própria grande mídia), a história não terminou.
Sonhemos. Com ambição. Sem tréguas, sem limites, no pensamento infinito. É tão bom ouvir "Imagine"! Por que ser "ingênuo" virou algo ofensivo? É o maior dos elogios. A inocência infantil é a força da própria experiência de vida. E é a vida que o não-pensamento contemporâneo quer colonizar com seus incontáveis dispositivos. Vamos profanar até a última centelha da cultura e pensar sem limites um futuro completamente outro. Esse é o desafio da geração que vem.

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quinta-feira, julho 02, 2009

MAIS JABÁ

Tem tanta coisa legal que a gente lê que dá vontade de reproduzir... Só que a Andréa se puxou demais. Apesar de não ser nenhum Warat, queria reproduzir aqui um poema do blog, com a ressalva da minha mutilação ao estilo belamente concretista com que ele se insinua.

Tecendo Amores.

A função do amor?




Amortecedor.




Amor tecer dor?




Sim, (e)ternamente.

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JABÁ


Sonic Youth, "Sacred Trickster" (vale a pena assistir o clipe)


Silversun Pickups, "Panic Switch"


Grizzly Bear, "Two weeks"


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