Mox in the Sky with Diamonds

segunda-feira, julho 27, 2009


ALTERIDADE E SACANAGEM

ESTOU HÁ HORAS para escrever esse post. Mas, como até agora não consegui fazer o assunto emplacar, a escrita ficou meio travada. Mas aí quando eu leio um blog genial como esse, até dá vontade de escrever. E também admito a inspiração direta desse post.
É possível que os parceiros (homens ou mulheres, homo, hetero, bis, etc.) mantenham uma relação afetiva com base na ética da alteridade? Foi mais ou menos por essa linha que Zygmunt Bauman, por exemplo, criticou a sociedade contemporânea e suas relações afetivas em "Amor Líquido". Ou, por exemplo, é dessa forma de Joel Birman, no brilhante "Mal Estar na Atualidade", traduz o narcisismo como estado em que o indivíduo usa o corpo do outro unicamente para predação, sem aprender a admirar sua alteridade. E, por uma época, eu realmente pensei que esse era um bom ponto. Aliás, é um bom ponto.
Qualquer pessoa com experiência afetiva e um pouquinho de inteligência sabe que não existe beco mais sem saída do que uma relação em que não existe respeito pela alteridade do outro. Não existe maior armadilha do que a representação. Quer ser infeliz no amor? Simples: basta, ao conhecer uma nova pessoa, colocar nela a realização de todos os seus desejos e ficar imaginando que irá a transformar na pessoa ideal. "Ela tem tudo para ser exatamente como eu gostaria que fosse minha mulher!". "Ele é um pouco ..., mas em breve será o homem ideal!". Fracasso certo. Não vai funcionar. Ao aceitar outra pessoa, precisamos inicialmente começar pela diferença, se não a coisa não tem qualquer chance de funcionar. Aquela imagenzinha escondida na nossa cabeça -- a "mulher ideal", o "homem perfeito" -- são representações. E representações só existem enquanto tal; no mundo real, o que existe é brutalidade do real (ou seja, a alteridade). O outro não é o que eu penso que ele é, nem quer ser. Se tentar, vai sofrer um monte. Os dois, aliás. Se começo uma relação acreditando que posso mudar o outro, não comecei nada. Já comecei com violência; é uma relação natimorta. O "passado" sadio foi imediatamete engolido por uma estrutura que já começou corrompida. E, por isso, vemos tanta gente sofrendo, desesperada para "salvar a relação", ou, pior, incapaz de desistir do seu projeto. Sob esse prisma, a ética da alteridade tem toda razão.
As coisas começam a se complicar quando a questão da "violência" é equacionada. Com sua postura radicalmente anti-violenta, a ética da alteridade pode acabar exagerando em certos pontos. Porque o Marquês de Sade sabia algumas coisas.
Não posso ser acusado de não ver seriamente as coisas. Aliás, geralmente me acusam -- desde criança -- de ser sério demais. De fato. É que, em relação a certas coisas, o riso é obsceno. Diante da barbárie, da catástrofe que se arrasta na história e vai consumindo vidas sobre vidas, não há riso possível. Só indignação. E, nesse ponto, pensadores bufões como Nietzsche e Sade podem ser legitimadores da barbárie. Sua ironia cínica pode ser uma estrutura de "festa da Totalidade". Sobre isso, já falei por aqui.
Porém não é disso que estou falando. As relações entre sexo e violência são claras. Se, na área propriamente política, a violência é inadmissível, em qualquer nível (nesse ponto reside meu radicalismo e minha posição política), no amor, poder e violência fazem parte do menu. Sade sabia disso. Nietzsche -- um completo fracassado no plano afetivo, diga-se de passagem -- também, de certa forma, sabia -- e por vezes tinha medo (das mulheres, especialmente). O erotismo da nossa época é indissociável do poder. Contardo Calligaris certa vez escreveu uma passagem que vale a pena reproduzir ipsis litteris:

A leitura prolongada de Sade me produz sempre uma espécie de enjoo. Não é efeito de horror ou de reprovação; acho que meu mal estar tem duas causas: a sensação de que não há como fugir da insistência das fantasias eróticas e a constatação de que, no erotismo moderno (que Sade propriamente revelou), sexo e poder são indissociáveis, como se fosse impossível desejar um corpo sem querer prendê-lo, atormentá-lo e, em última instância, supliciá-lo ou (dá na mesma) sem querer ser preso, atormentado e supliciado por ele.

O amor erótico tem um jogo; e é preciso jogá-lo para que a coisa aconteça. Nesse ponto é que vejo o limite da "santidade" de Levinas (aliás, é sintomático que Levinas pule essa etapa em "Totalidade e Infinito", já constituindo a relação homem/mulher como uma "casa") ou do amor bem-comportado de Bauman. No jogo erótico, não há limites. Com Eros não se joga da mesma forma que com o amor "cristão", a solidariedade com o outro. Eros joga pesado. Seus jogos são jogos perigosos. Suas fantasias não são domesticáveis. O belo e o feio fazem parte desse jogo. O moral e o imoral, jamais. É esse o risco que certo discurso feminista -- com o qual, via de regra, concordo -- corre. Ao hipostasiar demais a ética da alteridade (nesse caso provavelmente desempenhando o papel de lençol que encobre ressentimento), pode acabar esquecendo Eros e seu jogo terrível, mas necessário. O jogo perigoso de Nietzsche, Freud, Sade, Battaile, Deleuze. Um jogo que o perverso não apenas pode jogar, como inclusive costuma jogar melhor que os demais. Bauman, ao se arriscar nesse terreno, acaba parecendo os padres da Igreja, e isso risco é mortal para a ética da alteridade. O moralismo com que analisa os novos jogos de poder e erotismo da contemporaneidade causa uma inevitável dor-de-cabeça a qualquer nietzschiano.
Eros gosta de brincar. Eros profana. Eros jamais santifica. Eros não pode sacralizar. O Eros sacralizado é um Eros perdido, decaído, corrompido. O Eros santificado é um Eros inexistente. Quem santifica o outro, não tem Eros. Eros é poder e violência. As identidades eróticas se constróem nesse jogo. Quem tenta dele escapar, sai de cena. Eros não é justo ou injusto; Eros existe, nos atravessa e constitui aquilo que poderíamos chamar de "ordem do desejo", na qual o puro e o impuro se nublam, o certo e o errado se perdem, na qual o outro não pode me interpelar.
O risco do ascetismo -- contra o qual me vacinei desde a leitura de Nietzsche, há mais de dez anos atrás -- é um fantasma que percorre a ética da alteridade. Ler Levinas, Adorno e Blanchot numa mão está certo, porém com Battaile, Deleuze e Guattari na outra. Na sacanagem ninguém se salva.

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