É PROIBIDO SONHAR
CONTARDO CALLIGARIS, comentando as últimas pesquisas realizadas com jovens sobre a sua visão da vida em geral pela Folhateen, chamava atenção para o fato de que estamos diante de uma geração de "sonhos baixos", burocrata, incapaz de se aproximar de grandes projetos, almejando apenas um bom e estável emprego e se definindo, predominantemente, "de direita".
Parece que o grande sonho do pensamento hegemônico na década de 80 se consumou. A minha geração, de fato, é incapaz de sonhar. Perdemos o direito de sonhar. Admitir utopias virou ofensa. Todo interlocutor que quer atirar no discurso alheio afirma: "isso é utópico!". Ou as pessoas se desculpam: "sei que é meio utópico, mas...". Afirmar algo diferente do insuportável cotidiano virou motivo de chacota ou uma piedosa consideração. Desde quando perdemos a capacidade de pensar as possibilidades de um lugar diferente do nosso? A roda do tempo parou de girar? Paradoxalmente, foi o último profeta contemporâneo que decretou: "the dream is over".
Os anos 80 e 90 se aproveitaram do vazio da frustração dos sonhos messiânicos da contracultura. Com um indivíduo desiludido, mas ao mesmo tempo livre das regras tradicionais (portanto, de todas as amarras), pôde se afirmar o tipo de racionalidade que hoje é predominante: o cinismo. "Sei que é errado, mas todo mundo faz". "É um absurdo, mas sempre foi e será assim". "Teremos sempre que conviver com injustiça". "Isso é pensamento de carola". "Bonito seria esse gesto, mas, como ninguém faz, eu também não faço". "Esse pensamento é absurdo, totalmente utópico". "Deixa de ser bobo". "Eles se fazem de coitados". Frases predominantes na minha "pragmática" geração-X, talvez ainda mais poderosas hoje em dia. Pensar a diferença - portanto, pensar - se transformou em algo insuportável. Ofensivo. Dá raiva nas pessoas (mesmo!). É proibido pensar o bem ou a felicidade; é só o cinismo e o cada-um-por-si que vigora. Quem ousa discordar é um hipócrita. Mesmo que não seja. Ou é a figura mais ofensiva de todas: o "ingênuo". (Ingênuo é quem rejeita o cinismo e a perversidade da nossa época.)
Acho triste isso. Claro, muito foi em razão de circunstâncias políticas contingentes. A queda do Muro de Berlim foi um golpe estonteante na esquerda. Não é "moda" ser de esquerda. Fórum Social Mundial é coisa daqueles "bichos-grilo-fumadores-de-maconha" que não se confundem conosco, os "realistas" (cínicos). (Diga-se de passagem que esse bicho-grilo e sua maconha são muito menos nocivos que alguns empresários que ganham prêmios e são defendidos por teorias políticas conciliatórias.) Os ainda resistentes à direita foram para o liberalismo político, defendendo no máximo uma social-democracia bem-comportada (ou a sacrossanta "Constituição Dirigente"). Questionar o modelo liberal do contrato social, democracia representativa e império da lei virou algo quase "irracional", senão de "dinossauro". Outros resolveram migrar para a direita mesmo e ficar bem engravatados no seu atuarialismo blasé. E outros, finalmente, foram para o fascismo. "Tem que matar tudo!"
Já é hora de virar o jogo. Obama pode ter mil problemas, mas sua eleição representou uma espécie de rejeição de modelo cínico de política (a chamada "realpolitik"). Não dá para acusar o presidente norte-americano de não ser alguém que atua com princípios, ainda que se discorde deles (e isso desvincula princípios de sectarismo ou fanatismo). É preciso que voltemos a sonhar. A tragédia cotidiana não é inevitável. É pura contingência. Pensadores duros como Foucault, Agamben e Bauman não cansa(ra)m de afirmar: nossas análises não são pessimistas; ao contrário, mostram a contingência das estruturas que produzem infelicidade e a sua reversibilidade. Por que ser utópico virou ofensa? A utopia não é o que nos impulsiona em direção ao Novo? Se o tempo não parou, o Novo continua sendo possível. E, apesar de certo pensamento de "fim da história" ainda hegemônico na mídia (em vias de declínio -- tanto essa "razão ardilosa" quanto a própria grande mídia), a história não terminou.
Sonhemos. Com ambição. Sem tréguas, sem limites, no pensamento infinito. É tão bom ouvir "Imagine"! Por que ser "ingênuo" virou algo ofensivo? É o maior dos elogios. A inocência infantil é a força da própria experiência de vida. E é a vida que o não-pensamento contemporâneo quer colonizar com seus incontáveis dispositivos. Vamos profanar até a última centelha da cultura e pensar sem limites um futuro completamente outro. Esse é o desafio da geração que vem.