Mox in the Sky with Diamonds

sexta-feira, julho 31, 2009


DIA DO ORGASMO

HOJE É "DIA DO ORGASMO". Como? Pois é. Ouvi no rádio.
Um "Dia do Orgasmo" pode significar muita coisa. Em primeiro lugar, o visível desconforto dos conservadores que odeiam o prazer sexual. Para esses seres humanos pré-freudianos, bom é reprimir e reproduzir. Alvos fáceis da psicanálise, não raro projetando no outro todos os seus desejos e sofrendo o efeito ricochete, freqüentemente terminam humilhados em praça pública. (A magistral análise de Contardo Calligaris sobre o governador Spitzer -- o "Moralizador" -- esgota o tema.)
Mais interessante do que essa simples confrontação entre conservadores e liberais, típica dos anos 60, é analisar a questão sob o prisma contemporâneo, na linha do ensaio "Elogio à Profanação", de Giorgio Agamben.
Profanar, ensina o filósofo italiano, tem um sentido técnico que não deve ser ignorado: significa devolver ao uso comum aquilo que havia sido separado na esfera do sagrado. Imaginem um santinho de presépio. No momento em que se termina a escultura, aquilo que era um simples acrílico passa à esfera separada, tornando-se indisponível ao uso comum. Não raro o objeto é inclusive "benzido" na Igreja. Profanar esse santinho não é o chutar, como certa vez fez um bispo da Igreja Universal. Isso poderia ser uma heresia. Profanar significa inventar o novo uso; não por uma crítica ou afronta, mas mediante uma espécie de distração, indiferença à separação. A criança que resolve brincar com o "bonequinho" está o profanando, retirando-o da esfera do sagrado à qual ele pertencia. Os maconheiros que fecham baseados com folhas da Bíblia estão a profanando, inventando um novo uso para o objeto sagrado.
O sexo pode ser profano ou sagrado. Profaná-lo pode ser restituí-lo ao uso comum, tirando-o da esfera separada. A Igreja sacralizou o sexo ao reduzi-lo à função de reprodução, pregando uma ascese que envolvia a repulsa da "carne" (infelizmente, Michel Foucault não teve tempo de escrever esse último capítulo da "História da Sexualidade"). Profaná-lo poderia ser devolver o uso aos corpos, inventando novas formas de sexualidade. E, de fato, o sexo foi profanado. Os puritanos têm pouca ou nenhuma voz na nossa sociedade; salvo quando seus interesses se juntam estrategicamente a outros (como ocorre no caso Berlusconi, hoje em dia). Embora não totalmente não demovida a questão da carne e sua repressão (que Freud, de certa forma, canonizou no Mal-Estar na Civilização), hoje podemos ter "Dia do Orgasmo".
Mas Giorgio Agamben não pára por aí. Na sua fase atual, diz ele, o capitalismo se transformou em um gigantesco mecanismo de captura das profanações. A principal estratégia que esse capitalismo utiliza para capturá-las é o espetáculo. No espetáculo, aquilo que inicialmente era profano passa a ser - enquanto profano - separado na esfera do sagrado. Um exemplo: o grunge - "movimento" de rock que abarcou bandas de Seattle no início da década de 90, incluindo Nirvana, Pearl Jam, Alice in Chains, Mudhoney, Soundgarden, Temple of the Dog - inicialmente surgira como "contestação" do espetáculo. Seus integrantes usavam roupas quaisquer, ou seja, simplesmente camisas de flanela e calças jeans, em contraponto às polainas, glitter e permanentes do hard rock farofa até então prevalente (bandas como Poison, Bon Jovi, Van Halen, Kiss). Em princípio, isso parecia uma profanação. Porém a estratégia do espetáculo era sugar tudo para seu interior, como um buraco negro que tudo engole. Por isso, as camisas de flanela, que nada mais eram do que roupas comuns em Seattle, foram elas próprias separadas e sacralizadas. Assim o espetáculo engoliu a profanação e criou o "Improfanável". É precisamente esse lugar vazio (que os grunges queriam estabelecer) que dá a chance de o Novo surgir, pois sem esvaziamento ou suspensão do existente não há chance para que algo novo aconteça. E é esse lugar vazio que o poder se apropriou pelo espetáculo, transformando-o -- ele, que seria o lugar profano por excelência -- em lugar sacro, em algo separado no seu próprio vazio de sentido. Assim, o vazio contemporâneo não é mais a chance de algo novo, uma "clareira" em que o existente é suspenso e o outro pode vir, mas sim um ídolo, um vazio "forte" que se impõe na sua própria insipidez sem que possa ser contestado.
Agamben termina o seu ensaio referindo a pornografia. Para ele, o dispositivo da pornografia captura as condutas profanatórias -- que restituiriam o sexo ao uso comum, fazendo girar a capacidade circular que o ser humano tem de inventar comportamentos lidinosos -- colocando-as em uma esfera separada que é idolatrada por consumidores solitários. Assim, a chance que se abriu com a derrubada da sacralização-conservadora da ascese cristã é sugada por um dispositivo que captura as profanações daí surgidas, colocando-as na esfera separada/espetacular da pornografia. Imoral, diz Agamben, não são as atrizes individuais nem as condutas sexuais, não raro de intenção liberatória, mas o dispositivo da pornografia. No campo sexual, o dispositivo que captura a profanação e a separa no espetáculo é a performance do indivíduo -- regida pelos seus "especialistas" (os "sexólogos").
Em que aplicamos isso ao "Dia do Orgasmo"? Não será esse dia mais uma tentativa de captura da vida pelos dispositivos do poder? Para que precisamos de "Dia do Orgasmo"? Para consumir brinquedinhos? Aumentar procura por quartos de motéis? Celebrar em restaurantes? Alugar filmes na locadora? Melhorar a "performance"? O que interessa é a vida; ou seja, essa esfera espontânea que não se submete a instituições ou dispositivos, que está fora de qualquer relação com a norma. Por isso, o sexo não deve se tornar um conjunto de compromissos sadianos -- como ressaltei uma vez e o GD, de certa forma, comenta novamente -- mas o livre-uso do corpo e do prazer, a restituição da carne ao uso comum, a penetração de Eros e seus jogos profanos independente das ordens que emanam dos dispositivos.
Profanar o Dia do Orgasmo, portanto, só pode ser a plena indiferença ao Dia do Orgasmo no ato sexual.

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