A FESTA AINDA NÃO COMEÇOU
PROMETI que faria dois posts em resposta ao comentário do Zé (depois vi que ele articulou tudo em um post, mais uma vez ótimo). E nem buscava consenso. O Zé e os outros amigos sabem que é agradável, para quem não é narcisista, cultivar diferenças. Apesar disso, chegamos a um solo comum, aparentemente (e isso também é agradável). Porque, como já disse, o lugar onde queremos chegar é o mesmo.
Mas também afirmei que o segundo post seria mais duro com a temática -- e será. Se no primeiro texto procurei trazer a política para o espaço micro, ressaltando a não-neutralidade das "tribos" (umas profanatórias, outras sacralizantes), agora vou tocar no outro ponto (que, aliás, é sempre pauta de debate também com o Mayora): o desprezo pela política tradicional.
O que parece ofensivo em certos autores "celebratórios" como Maffesoli e Lipovetsky é que a festa ainda não começou. Suas celebrações da diferença e do sujeito hipermoderno (nomenclatura que considera a melhor de todas, inclusive melhor que a "Modernidade Líquida" de Bauman) ignoram a existência de um "resto" que está sob os escombros da bela história por eles contada, sem os mesmos requintes e charmes, mas exposto na sua nudez fragilizada e desamparada. A história ainda não está redimida. Pairam sob a nossa felicidade -- supondo que exista essa felicidade no vazio --, por baixo das construções teóricas legitimantes e diferenças tribais, os restos nus da pura barbárie que ainda vivemos. Ainda vivemos.
Os miseráveis, refugiados, imigrantes ilegais, as vítimas de guerras e genocídios e tantos outros são testemunhos de que a barbárie persiste. Vivemos em meio a ela. O Brasil -- um país que há apenas pouquíssimo tempo resolveu que é indecente passar fome -- ainda vive em meio ao horror cotidiano. Esses "restos" que sempre ficam de fora, no detalhe, não querem apenas ver reconhecida sua diferença, nem exercitar a profanação. Eles estão aquém da dignidade, em um estágio anterior a qualquer reivindicação cultural. Para eles, o narciso de Lipovetsky -- que "abre espaço para diferença na sua indiferença" -- é apenas mais violência. Eles têm fome, morrem de frio, são executados ou espancados pela polícia, rastejam pedindo esmolas ou enfiam-se em uma realidade paralela para fugir da tragédia cotidiana. Para esses, a indiferença é obscena; o amor fati é violentíssimo.
É preciso pontuar: só existe contracultura onde existe cultura. Para esses "restos", esses que nada importam nas construções teóricas celebratórias ou legitimantes, e tampouco (o que é mais trágico) na realidade, o que existe é barbárie. Esses não estão interessados em questões (contra)culturais, mas na sobrevivência. Não querem apenas poder se manifestar; querem se alimentar. Não querem ser "reconhecidos" como tribo; querem ter roupas para não morrer de frio. Estão expostos, como vida matável, descartável -- vida nua. Não têm cultura para oferecer; estão desamparados, jogados no mundo (como todos nós) em uma condição desumana. Desumana porque o que nos faz humanos é o cuidado. É o cuidado que sustenta o logos, nossa capacidade de inventar e reinventar linguagens e gestos distintos, buscando a felicidade. Sem cuidado, morremos. Podemos teorizar o quanto quisermos sobre a "diferença" do bebê, sobre seus gestos, sua linguagem, mas se não lhe dermos comida ele morre. Simples.
É essa a minha crítica ao desprezo da política. É preciso histeria diante do que é, de fato, um escândalo. É um escândalo que deixemos os outros morrerem. Que desperdicemos vidas. Que estejamos vivendo em um tempo em que algumas pessoas não vejam mais qualquer sentido em viver, atirando-se numa mortificação gradual e devastadora a partir do crack ou outras drogas. Não tem teoria da diferença cultural que sustenta esse zumbi que é o usuário de crack. Ele não quer dizer nada, mal consegue ter prazer na sua droga quase instantânea. É escravo de uma substância destrutiva porque não vê motivos para não se destruir. Sua vida não vale nada. Ele se vê assim E É VERDADE. É VERDADE QUE A VIDA DO "RESTO" NÃO VALE NADA. Temos que encarar isso numa espécie de "psicanálise da cultura" - como diz o Timm - encarar que essa vida para nossa política realmente não vale nada. Que essa vida nua - vida habitante das palafitas, dos morros, das periferias, vida que vive nos esgotos, na selva (como os refugiados africanos), etc -- essa vida realmente vale menos - e por isso eles sabem e agem como agem (basta ver os "Falcões" do MV Bill). Aliás, é estranho que precise o MV Bill dizer que quem gosta de pobreza é intelectual. Podem até surgir manifestações culturais admiráveis da favela (o hip hop, a dança, grafite, etc.), mas tudo isso é só detalhe diante do horror coletivo que vivem essas pessoas. Isso só serve para enxergarmos o que desperdiçamos.
Não nos esqueçamos -- para botar os pés no chão -- que historicamente a contracultura surgiu sobre os ombros do Welfare State. Foi com a extensão do período de educação para os jovens e alargamento da adolescência que começou a surgir a "cultura jovem" dos anos 50 e 60 (Elvis, James Dean, os beatniks etc.) que então desembocou nos movimentos de contracultura de 68. Existe contracultura onde existe cultura, e não barbárie. Não por acaso os movimentos contraculturais - diga-se o que quiser - são tão fracos no Brasil. Basta visita a Europa e comparar. A contracultura está sobre os ombros da civilização (a questão "barbárie/civilização" não tem nada a ver com o evolucionista do século XIX, por óbvio).
Enfim, repito: só existe contracultura onde existe cultura. Diante da barbárie, só nos cabe reagir com a política tradicional: ou seja, aquela que busca a redenção dos restos que ficam sob os escombros das lutas históricas -- da vida nua cuja urgência exige a histeria ética.