A FÍSICA VAI NOS DAR TODAS AS RESPOSTAS?PARA OS ATEUS, como eu, a evolução das ciências é algo extremamente bem-vindo. A cada momento que passa, questões antes sem resposta ganham explicações e nos sentimos menos escravos da transcendência "lá fora", ou seja, daquilo mundo que não é o nosso, pelo qual vivemos com medo durante tantos séculos. A física, particularmente, apresenta respostas para questões essenciais, provocando um desvencilhamento do mundo "sobrenatural".
No domingo, o ótimo colunista Marcelo Gleiser escreveu na Folha de São Paulo um artigo chamado "Consciência Cósmica". Gleiser afirma que tradicionalmente as questões essenciais eram delegadas a explicações sobrenaturais (míticas ou religiosas), mas que, hoje em dia, a ciência as encara. E procura arrolar um primeiro tema, que é o seguinte:
1. O cosmo é único, resultado de uma estrutura matemática que a física teórica vislumbra em raros momentos. Por trás da enorme diversidade das coisas, em particular da matéria e das suas propriedades, existem leis bem determinadas e eternas que ditam desde a existência do Universo ao valor da carga e da massa do elétron.
Se algum dia obtivermos essa teoria unificada, a teoria de tudo, teremos chegado ao ápice da racionalidade, decifrando o código secreto da natureza.
(A "mente de Deus" como Hawking e outros afirmam.) Segundo essa visão, a vida e a mente são acidentais, já que a física e a química têm pouco ou nada a dizer sobre a emergência da vida.
Fiquei pensando nisso que Gleiser escreveu. Será que, se decifrarmos uma "teoria de tudo", teríamos também a "mente de Deus"? É aqui que aparece a ingenuidade epistemológica do cientista.
A Modernidade, desde Descartes, pensou a relação sujeito/objeto, mediada pela razão, como o vínculo fundamental do Eu com o Mundo. As relações internas desse sujeito seriam a "subjetividade". O objeto, para que bem estabelecido o pensamento científico, deveria ser apreendido na sua "pureza", limpo de qualquer dessas interferências "internas", formando assim a "objetividade". (A "subjetividade" é então delegada à psicologia, que por sua vez investigaria objetivamente essas relações internas.) A "objetividade" nos guiaria ao pensamento absoluto, válido independente do tempo e do espaço, quando confrontaríamos as coisas "nuas", ou seja, "puras", sem referência a qualquer interioridade. Por isso a pergunta fundamental da Modernidade sempre foi a pergunta epistemológica.
Pois não é exatamente esse o sonho da "mente de Deus" de Hawking? Encontrar o universo "nu", mapeá-lo para assim controlá-lo, detendo o "pensamento absoluto"? Encontrar a "objetividade última", o último ponto em que o pensamento se desconecta de si mesmo e passa a ser apenas um espelho final do mundo?
Desde Nietzsche até Heidegger e os demais contemporâneos, parece claro que a "objetividade" não esgota o ente. Ou seja, a dimensão "objeto" nada mais é do que uma faceta do ente - uma específica faceta que permite o controlar e medir -- mas jamais esgota a totalidade desse ente. Ao contrário dos esotéricos, que usam bizarramente filosofia e física quântica para inflacionar o sujeito até sua implosão em uma espécie de mônada-solipsista (leia-se: "O Segredo"), todo esforço da filosofia do século XX -- de Bergson a Adorno, de Benjamin a Levinas, de Husserl a Foucault -- foi justamente recuperar essa esfera fora-de-controle do sujeito e mostrar como ela excede a dimensão "objetiva". Sem desmentir a ciência, sem retirá-la do seu papel fundamental, esses filósofos trabalharam no sentido de desfazer a idéia de que o intelecto é o mundo, que chegou ao poderoso ápice em Hegel -- ou, para Heidegger, na "vontade de vontade" de Nietzsche. Separando razão e realidade, o ente retoma sua dignidade e ganha mais faces. Assim, a dimensão sujeito/objeto não perde sua importância, mas sim o lugar fundamental. A epistemologia continua sendo importante, mas não "filosofia primeira".
É por isso que valorizo a obra de Heidegger, apesar das várias críticas possíveis a ele. Heidegger nos ensinou que a dimensão sujeito/objeto não é fundamental porque ela já pressupõe outra relação mais fundamental. Heidegger parte da premissa de que o pensamento não pode partir da pretensão de exceder o tempo e refugiar-se em direção ao absoluto, procurando o infinito. O pensamento precisa, primeiro, pensar-se a si próprio na finitude. Não transbordar a condição temporal, mas assentar-se nela. Ele traz de volta o pensamento ao concreto, ao "aqui embaixo", não em um pensamento que busca cada vez mais se aproximar do absoluto, mas pensamento que pensa a si mesmo enquanto finito. Essa teria sido a fraqueza fundamental da tradição e a razão da destruição da metafísica. Reconhecer que a metafísica deve ser destruída significa circunscrever cada "princípio epocal" (as idéias de Platão, a substância de Aristóteles, o Deus dos medievais, o sujeito de Descartes, a "vontade de vontade" de Nietzsche, etc.) como uma determinada manifestação do Ser, e não como um mero erro que deve ser descartado a cada passo mais próximo do pensamento absoluto. Cada "princípio epocal" corresponde a uma forma finita em que o Ser foi pensado.
Partindo da faticidade, ou seja, do tempo [como certa vez disse o Timm (que não gosta de Heidegger) em sala de aula: "no século XX o tempo se vinga" (basta pensarmos em Rosenzweig, Benjamin, Bergson, Levinas, Derrida, etc.)], nós percebemos que para chegarmos na objetividade partimos de um ponto prévio, uma pré-compreensão do objeto. Essa pré-compreensão indica que já estamos em um solo prévio antes de começarmos a colocar os problemas científicos. Ser é ser-no-mundo. O mundo precede o empilhado de objetos que a ciência arrola. O sujeito não existe sem um mundo (se não tivéssemos mundo, seríamos como nossos irmãos macacos e gorilas). Assim se resolve a complicada e artificial "ponte" entre Eu e o Mundo que a Modernidade tanto pensou como relação entre "sujeito" e "objeto". Ser já é ser-no-mundo; o mundo já está dado, sem ele, não sou sujeito. Sem uma pré-compreensão do ente não chego ao objeto. Sem mundo (sem ser Dasein - "ser-aí") não sou sujeito. Ser é já estar-lançado no mundo. A "tábua rasa" de Descartes é uma ficção. A condição epistemológica é precedida pela condição ontológica -- é derivada.
A teoria de Gleiser parte da ingenuidade de que existiria esse "vocabulário final" que seria o da física. Ele toma a objetividade como originária. O que aconteceria se tivéssemos esse "mapa"? Ora, provavelmente muita coisa. Mas também é provável que, quando nos deparássemos com a descrição física da "mente de Deus", perdêssemos todo mundo. Como assim? Significa que a redução das coisas à sua dimensão objetiva não é capaz de apresentar as "coisas nuas", mas apenas uma apresentação dessas coisas. A descrição científica é apenas uma descrição, não a descrição fundamental. Pode ser a mais apropriada do ponto de vista da verdade como adequação, dentro do jogo de linguagem científico, mas não vai além disso. Uma árvore não deixará de ser uma árvore depois que se identificarem seus elementos físicos (e continuará, por exemplo, podendo ser cantada pelos poetas). A física não é capaz de dar conta integral do "mundo" (embora possa provocar milhares de mudanças nele). Essa dimensão originária e essencial não existe, é como a cebola que se descasca e não tem centro. A própria descrição física nada mais é do que mais uma casca da cebola. É como se disséssemos que o cérebro da mulher tem a reação Z quando vê um homem de pau duro porque o cérebro produz X e Y reações. Isso é parcialmente falso. Por que, afinal, o cérebro produz X e Y exatamente quando o homem está de pau duro, e não em outras circunstâncias? Porque o desejo já transborda da "natureza", já se circunscreve em outra ordem (da linguagem). Do fato de o cérebro produzir X e Y não é possível deduzir isso como causa da reação Z da mulher. Isso é incapaz de explicar porque ocorre só na situação descrita, e não em outras, se o fenômeno é biológico. Ou seja: a neurobiologia jamais será capaz de mapear o humano, assim como a física da "mente de Deus". Não existe centro na cebola.
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