ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA (O FILME)
TALVEZ AS EXPERIÊNCIAS de ler um livro e ver um filme, sejam distintas, ou semelhantes. Não sei bem decidir se uma coisa exclui a outra, ou se pelo menos a prejudica veementemente. Recentemente, "Desejo e Reparação" foi inferior a "Reparação" (McEwan); mais antigamente, nenhuma das filmagens de "Relações Perigosas", do libertino Laclos, chegou à estatura do livro (cito "Ligações Perigosas", com Gleen Close, "Valmont" e a adaptação "Segundas Intenções"). Lembro-me apenas de "O Processo", de Orson Welles, como uma obra que sintetizou bem o original, mesmo sem alcançar a grandeza de Kafka, por óbvio.
Moral da história: livros são melhores que filmes. Salvo, talvez, os filmes do Kubrick, mas Kubrick é Kubrick, e pronto.
O filme "Ensaio sobre a Cegueira" perde muito para o livro "Ensaio sobre a Cegueira".
A começar pela perda maior, embora previsível: a bidimensionalidade do livro, que exibe uma primeira camada fantástica (literalmente) e instigante, mas também uma segunda camada mais filosófica e reflexiva, esta se perdendo em grande nível na película. Ficamos apenas com os fatos brutos.
Mas essa perda era previsível: o que não esperava era um certo pudor que atravessa o filme. Com todo respeito ao Meirelles (de quem admiro "Jardineiro Fiel" e "Cidade de Deus"), é tudo muito tímido. Se algo nos mostra Saramago, é que, uma vez cegos, pisaríamos nas nossas fezes, viveríamos entre odores insuportáveis, nos depararíamos com a experiência de enterrar sem ver, seríamos sufocados por uma brancura nauseante. Tudo isso se perde no filme: é tudo muito sutil e até limpo, a sujeira e a podridão são discretas demais (a "limpeza" do Manicômio é paradigmática a esse respeito), a cegueira confunde-se com a opacidade (interessante), mas perde-se a angústia e o desespero. A película é demasiado centrada na "mulher do médico", que vê, e pouco dá do ângulo dos cegos. Além disso, é desapontante a atuação rasa e pouco envolvente dos atores, que não despertam a empatia ou o nojo do espectador.
Nesse sentido, nenhum personagem é mais insosso que o de Gael Garcia Bernal. Ator "da moda" no cinema hollywoodiano-cult, Gael não consegue passar nada, é completamente vazio no personagem que deveria despertar asco. Mesmo que não despertasse isso, mesmo que se quisesse fugir do maniqueísmo, alguma coisa deveria despertar.
Fernando Meirelles e Walter Salles são os dois diretores mais bem-sucedidos do cinema brasileiro atual. Temo, no entanto, por uma contaminação excessivamente hollywoodiana que tiraria a densidade dos seus filmes, adaptando-os ao cinema da pipoca. É uma opção, mas, a meu ver, uma opção lastimável. "Linha de Passe", filme que apesar de tudo é ótimo, já tem um pouco disso, não pela recusa da violência extrema que, a meu ver, é mérito no filme; mas por certas vezes hesitar demais, criar "climas" decisivos, enfim, truncar a vida que percorre o filme em forma de espetáculo para a platéia. "Ensaio sobre a Cegueira" logra menos sucesso: apesar de relativamente fiel ao livro, perde muito da sua densidade pelo vazio dos personagens, a ausência de bidimensionalidade e excessivas concessões para um livro que não poderia ter adaptação que não fosse de causar mal-estar.
Em suma: na realidade, o único diretor que acertaria a mão em "Ensaio sobre a Cegueira" seria Lars von Trier.
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