segunda-feira, agosto 31, 2009
SALO DE CARVALHO INICIA O PROCESSO DE COMPARTILHAMENTO DE LIVROS JURÍDICOS
A ACADEMIA DO DIREITO não escapa à regra geral e, como tal, se mostra um emaranhado entre uma posição conservadora e tradicionalista ou um burocratismo indiferente. Os juristas se dividem entre conservadores que querem preservar as "tradições" e a "autoridade", de um lado, e os burocratas que desejam "passar em concurso" e se acomodar, do outro. O resultado desse imbróglio é o simples não-pensamento da maioria dos "operadores do direito". Acostumados a decorar leis e classificações inúteis, escondem-se por baixo da retórica rasteira ou definições bizantinas.
Mas há exceções. E Salo de Carvalho é, certamente, uma delas. Lembro-me até hoje de abrir "Pena e Garantias", 1ª edição, e achar um livro chato, embora interessante do ponto de vista estratégico. É que àquela época eu já entrava nas discussões de Maffesoli, Deleuze, Baudrillard e Virilio -- os "pós-modernos". O livro, por outro lado, era tremendamente marcado pelo discurso iluminista, não raro referindo declarações de direitos da ONU e da Constituição. Quando fiquei sabendo que o Salo seria meu professor na Especialização, fiquei indiferente. Ok, lá vem aquele cara falar de iluminismo, Ferrajoli, garantismo, etc.
Nada feito. Choque total. Na aula, Salo falou de Nietzsche, do trágico, das idealizações do sistema penal e inclusive do garantismo. Fiquei louco. Afinal, certamente era a primeira vez que ouvia falar de Nietzsche em uma das sagradas faculdades de direito. Em apenas uma intervenção, Salo desconstruiu toda imagem que nutria dele, passando de um oposto a outro (dizem por aí que isso se chama alteridade...). No Mestrado a experiência foi igualmente fantástica.
Tudo isso para dizer que o Salo coloca agora alguns dos seus livros à disposição em versão virtual para download, aderindo ao copyleft. Escrevi por aqui esses dias da importância da Internet como um mecanismo de mudança de comportamento radical: muito mais do que a troca da informação, a internet dissemina e põe em xeque todo regime da propriedade, revivendo a dádiva a partir do compartilhamento de arquivos e facilitando a experiência do comum. O estigma pirata se converte cada vez com maior intensidade em emblema, do que testemunham a emergência dos partidos piratas na Europa. Salo, que eu saiba, é um dos primeiros a disponibilizar e pode ter dado um passo decisivo com isso. Ele não costuma ficar para trás.
Eis o link.
sexta-feira, agosto 28, 2009
FÁCIL!
Ontem comecei a trabalhar no fórum de Canoas em um serviço comunitário vinculado à ULBRA. Como não sou advogado, não sabia onde ficava o prédio. A moça me indicou uma rua que não era exatamente a do local; na realidade, a frente do edifício estava virada para uma travessa.
Apesar disso, foi extremamente simples localizar o foro: bastou procurar o prédio mais sinistro e kafkiano das redondezas. Batata.
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LINDA MÚSICA
Para inspirar o fim de semana. Desde o início de agosto, venho me aproximando do Nine Inch Nails. "Right where it belongs" é belíssima balada.
"Right Where It Belongs"
See the animal in his cage that you built
Are you sure what side you're on?
Better not look him too closely in the eye
Are you sure what side of the glass you are on?
See the safety of the life you have built
Everything where it belongs
Feel the hollowness inside of your heart
And it's all
Right where it belongs
[Chorus:]
What if everything around you
Isn't quite as it seems?
What if all the world you think you know
Is an elaborate dream?
And if you look at your reflection
Is it all you want it to be?
What if you could look right through the cracks?
Would you find yourself
Find yourself afraid to see?
What if all the world's inside of your head
Just creations of your own?
Your devils and your gods
All the living and the dead
And you're really all alone?
You can live in this illusion
You can choose to believe
You keep looking but you can't find the woods
While you're hiding in the trees
[Chorus:]
What if everything around you
Isn't quite as it seems?
What if all the world you used to know
Is an elaborate dream?
And if you look at your reflection
Is it all you want it to be?
What if you could look right through the cracks
Would you find yourself
Find yourself afraid to see?
Para inspirar o fim de semana. Desde o início de agosto, venho me aproximando do Nine Inch Nails. "Right where it belongs" é belíssima balada.
"Right Where It Belongs"
See the animal in his cage that you built
Are you sure what side you're on?
Better not look him too closely in the eye
Are you sure what side of the glass you are on?
See the safety of the life you have built
Everything where it belongs
Feel the hollowness inside of your heart
And it's all
Right where it belongs
[Chorus:]
What if everything around you
Isn't quite as it seems?
What if all the world you think you know
Is an elaborate dream?
And if you look at your reflection
Is it all you want it to be?
What if you could look right through the cracks?
Would you find yourself
Find yourself afraid to see?
What if all the world's inside of your head
Just creations of your own?
Your devils and your gods
All the living and the dead
And you're really all alone?
You can live in this illusion
You can choose to believe
You keep looking but you can't find the woods
While you're hiding in the trees
[Chorus:]
What if everything around you
Isn't quite as it seems?
What if all the world you used to know
Is an elaborate dream?
And if you look at your reflection
Is it all you want it to be?
What if you could look right through the cracks
Would you find yourself
Find yourself afraid to see?
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quarta-feira, agosto 26, 2009
O DECLÍNIO DA MÍDIA BRASILEIRA
AS GRANDES REDES DE COMUNICAÇÃO - comandadas por oligarquias que apoiaram a ditadura militar e até hoje são o principal anteparo da direita nacional - estão em pleno declínio. A Internet faz com que seu fim de avizinhe. Elas sabem disso. Com a pulverização da informação, sua capacidade manipulatória de fixar a agenda pública vai desabar. E, com isso, todo poder que exercem perderá gás. Questão de tempo.
O desespero da Folha -- jornal cuja assinatura já penso em cancelar, e assinei com muito gosto durante muitos anos -- é apenas mais um sintoma disso tudo. Depois da morte de Otávio Frias Filho, o jornal perdeu uma certa contenção que tinha no ridículo e passou ao serrismo escancarado. Ontem, no Portal do UOL havia pelo menos umas cinco manchetes dizendo "Oposição...". Convenhamos, nossa oposição é ridícula: não apresentou plataforma eleitoral alguma, tem como paladino da moral um senador que mandou assessor estudar dança na França e ataca os oligarcas com que estavam tomando cafezinho há pouco tempo atrás. Não é notícia, pelo menos não na intensidade em que está sendo veiculado. Por que, por exemplo, a oposição não assume logo o discurso do mercado, como fazem os republicanos nos EUA? Nem isso consegue. Não consegue nada.
A quantidade de escândalos fabricados nos últimos dias é sinal de desespero: a Folha, que é aliada da oposição (não sou eu quem diz isso, é só ler o Ombudsman do jornal), já percebeu que em conteúdo não tem como vencer a próxima eleição. A tentativa de etiquetar Lula como paternalista, assistencialista, ideológico, aparelhador e, por fim, golpista, não colou. E com os índices de aprovação que tem Lula é improvável que não faça seu sucessor. Então agora o negócio é partir para a artilharia pesada, tentando colar algum escândalo que evite a eleição novamente da esquerda.
O recente episódio Dilma-Lima é a face do ridículo. Além de banal, a própria descrição do fato não induz as insinuações que a mídia vem fazendo. Caídas as insinuações, fica apenas uma questão de forma: Dilma é ou não mentirosa? É sempre assim: quando o dossiê é contra o PT, estoura o conteúdo; quando é a favor, estoura a forma-dossiê. Quando o sigilo quebrado é contra o PT, vaza o dado; quando é favorável, é o escândalo da quebra. Se a mídia brasileira não fosse arrogante a ponto de se desenhar como imparcial, eu nem me importaria com isso. No caso em questão, o problema é que a mídia alternativa já descobriu que Lina mente e inclusive tem relações com a oposição. Mas a grande mídia não denuncia. Quem quiser saber a verdade, consulte o Blog do Nassif, que vem fazendo uma cobertura ampla do caso e desmontando uma por uma das versões midiáticas.
A propósito, a Folha já começa ridiculamente a recuar sem admitir o erro.
A propósito, a Folha já começa ridiculamente a recuar sem admitir o erro.
Marcadores: Mídia
segunda-feira, agosto 24, 2009
ICEBERGS
Ele então nadou, nadou, nadou, e no entanto o mar se tornava cada vez mais infinito à sua frente. Apesar disso, percorrera já muitos quilômetros com um esforço inumano. Sob seus pés, uma quantidade gigantesca de metros o impediam de tocar o solo; e, no entanto, a intuição de que estava a enxergar – ou pelo menos imaginar – uma pequenina chance de salvação o motivava a nadar com mais ênfase, seguir nadando até encontrar uma saída. Ao seu redor, uma imensa escuridão fria, indiferente, completamente alheia à sua esperança.
Foi quando percebeu: o mar apenas esperava, pacientemente, a sua morte.
Marcadores: Estorinhas
sexta-feira, agosto 21, 2009
A MÍDIA NÃO É ESFERA PÚBLICA
MANCHETES E MANCHETES sobre José Sarney e Dilma Roussef (bem menos sobre Yeda Crusius). A mídia, defensora da "moralidade" e da "ética", ridiculariza os políticos, chamando-os de cafajestes e reclamando do apoio do PT a políticos corruptos. Já escrevi e reitero, no entanto, que todo movimento em cima de Sarney é estritamente político e revela perda parcial da cobertura, em face da ofensiva em favor de Serra que começa (para a próxima eleição presidencial) e do protagonismo do fisiológico PMDB. Os atos que Sarney praticou e hoje escandalizam não começaram ontem, mas a campanha sim. Para contribuir e fechar a cena ridícula, os defensores da moral, Arthur Virgílio e Pedro Simon, encontram-se em maus lençóis. O primeiro teve a coragem de declarar que seu ato de mandar um assessor estudar teatro na França não era nepotismo (?); o segundo, enquanto vocifera contra Sarney, é o principal eixo político de Yeda e sua organização criminosa, segundo o MPF, aqui no RS (Simon, se quiser ser paladino da moral, pelo menos SEJA).
Esse festival bizantino é agora complementado pelo factóide da reunião entre Dilma e Lina, funcionária da Receita. Desde o início, vi que a polêmica era ridícula, desproporcional e visivelmente eleitoreira. Dilma mandou "apressar" o processo contra o filho de Sarney, e disso foi deduzido que a função era "engavetar" (aliás, o brilhante FHC, grande defensor das instituições no Brasil, é que havia nomeado um engavetador na PGR -- sobre o quê, claro, nada se comenta...). Mais tarde, a assessora, chamada a depor, revelou que sim, falou com Dilma, mas foi pedido apenas celeridade. Morreu o factóide, mas agora fica a polêmica se Dilma é "mentirosa". Ei, isso é irrelevante no momento! O fato não existiu e, mentindo ou não, Dilma não fez nada de errado. Portanto, há coisas melhores para se discutir.
E, no entanto, segue a pauta única. Reitero: o problema da corrupção não é casuístico, não é mau-caratismo apenas. É mais fundo. O problema é a privatização da esfera pública, o fato de que o Brasil, como seus vizinhos da América Latina, é ainda governado por oligarquias, das quais a Sarney é apenas uma mais arcaica e menos fashion. E, se o problema é esse, é preciso dizer: a mídia não constitui uma esfera pública. A mídia não é o lugar adequado para discutir corrupção porque ela própria faz parte do jogo. Assim como as oligarquias que dominam o Congresso Nacional, há tempos a mídia é dominada por oligarquias e faz interesses privados pautarem a discussão pública. Os donos das redes midiáticas têm interesse na eleição de José Serra e farão de tudo para conseguir elegê-lo. Por isso, toda discussão moral é sempre seletiva. Por isso também jamais se discute o fundo do problema. E por isso ainda a discussão fica em torno de bodes expiatórios.
Reitero mais uma vez: tenho asco de Sarney e o PMDB. Mas não caio no moralismo da mídia. A estratégia é simplesmente udenismo: denunciar, denunciar e denunciar até conseguir atingir mortalmente Lula e Dilma, para eleger José Serra. Simples e rasteiro. Um olhar quantitativo e qualitativo sobre as tendências editoriais, o destaque das matérias, os títulos e abordagens torna nítido, transparente, óbvio que há dois pesos e duas medidas. A mídia não é esfera pública porque ela própria faz parte do engodo que coloca o privado no lugar do público, fazendo de grande parte da população massa de manobra de uma jogada política esperta.
Nem sei se tão esperta assim. O povo não é mais tão bobo. E Lula investe na economia como principal plataforma, que é algo quase invencível. O Brasil não parou na crise. O desemprego continua caindo. Bolsa-família e salário-mínimo, dois benefícios distributivos que são palpáveis para o pobre (ao contrário da boa gestão -- hihihihi -- tucana), continuam subindo e dando esperança. Isso o udenismo não atinge. Quando Danuza Leão vira bandeira da direita, é porque a coisa está feia.
Independente da tática falha, fato é que hoje a Internet se aproxima mais -- no seu anarquismo explícito -- do que seria uma esfera pública. Na Internet, é possível buscar opiniões duelando, informações variadas e não o funil seletivo e ideológico que impregna a grande -- e quase finada -- mídia. Enquanto Globo e Record duelam na lama, o futuro se avista e o fim do poder televiso dessas oligarquias se aproxima. Aproveitemos, enquanto o estado de exceção não se apresenta por aqui.
terça-feira, agosto 18, 2009
VERGONHA ABSOLUTA
É interessante que eu, um cara não-tímido (sou reservado e por vezes antipático, mas jamais tímido), às vezes sinto uma vergonha existencial tão intensa que me arrependo de tudo que disse, fiz e escrevi ao longo da vida. Não sei exatamente de onde vem esse sentimento, mas é algo tão sufocante que me faz sentir como alguém nu em praça pública, sendo observado por todos.
Até passar essa sensação, fico bloqueado na escrita.
Marcadores: Anything
segunda-feira, agosto 17, 2009
ESQUERDA NÃO-TRABALHISTA
No belíssimo "Cartografias do Desejo", registro de sua visita no Brasil na década de 80 co-escrito com Suely Rolnik, Félix Guattari, embora vendo no PT e em Lula a possibilidade de uma esquerda distinta daquela européia que estava habituado, já comentava que era necessário pensar também, daqui para diante, em uma esquerda não apenas do trabalhador, mas também do vagabundo.
O DNA do PT já está cravado no seu nome: é o partido dos trabalhadores. Não é de se estranhar, por isso, que certos petistas (não são a maioria, felizmente) têm uma visão de segurança pública exatamente igual a dos defensores da Lei e Ordem: os criminosos não são trabalhadores, afinal. Como o PT é o único grande partido de esquerda no Brasil, toda discussão é pautada pelo trabalho. O protagonismo do sindicalismo, que é a origem de Lula, e da intelectualidade marxista é sintoma disso.
A candidatura Marina Silva, por esse aspecto, pode também ser positiva. Repito: tudo dependerá de como ela construirá uma coalizão de forças ao seu redor. É só isso que nos permitirá analisar o processo. Falo, portanto, em tese. E, em tese, a candidatura Marina pode fortalecer a formação de um grupo de esquerda desvinculado do trabalhismo em geral.
No Brasil, o eleitor que parece um pouco o liberal norte-americano, defensor da sustentabilidade, do pluralismo social, dos direitos humanos, da descriminalização das drogas e do aborto, do pacifismo, das ações afirmativas e outros temas fica quase sem representação. O PT, reitero, é o partido do trabalho, tem nele a sua principal pauta. Sustenta os outros temas como bandeiras periféricas. O eleitorado de esquerda cujas principais preocupações tem que votar "por tabela", acreditando que, por ter sido um partido surgido "de baixo para cima", como foi o PT, tem uma agenda mais flexível e é capaz de equacionar melhor essas questões (e, de fato, é assim).
Não importa tanto se Marina Silva tem chance de vencer pelo PV. Alguns petistas já estão partindo para agressão. Que bobagem. Essa coisa partidária-fanática é mesmo boba. A eleição não é apenas a consagração da glória do vencedor, mas também a constante circunscrição de limites entre campos políticos. Um candidato que sai em terceiro ou quarto lugar pode terminar a eleição mais forte do que começou. E um que sai em segundo mais fraco (caso, p.ex., de Geraldo Alckmin). As coisas não são lineares. Não é um bom argumento para rechaçar Marina o fato de que Dilma, só por ser do PT, é melhor; tampouco o de que só Dilma é "viável" eleitoralmente. Marina pode representar a formação de um quarto bloco político, alheio a PT (trabalhistas), PSDB-DEM (conservadores) e PMDB (fisiológicos), composto por "liberais de esquerda" e "anarquistas" que priorizam outras temáticas que não a do trabalho. Formado o campo, ele passará a negociar com os dois protagonistas eleitorais.
Marcadores: Politics
sexta-feira, agosto 14, 2009
LEITURAS DAS FÉRIAS
René Girard, "A Violência e a Sagrado"
Marcel Mauss, "Ensaio sobre a dádiva"
Clifford Geertz, "Nova luz sobre a antropologia"
Marcel Mauss, "Ensaio sobre a dádiva"
Clifford Geertz, "Nova luz sobre a antropologia"
Resolvi ler alguns dos principais autores da antropologia, a fim de retomar um pouco algumas leituras que tinham ficado para trás desde o Mestrado. Girard foi o primeiro dos três, pois era o mais afim do tema que venho estudando em geral: a violência. Em "A Violência e o Sagrado", desenvolve a ousada tese de que toda formação do sagrado -- em qualquer lugar e tempo do mundo -- consiste em um enigma que dá conta da condição humana e pode ser decifrado: os humanos vivem, no início, um ciclo de violência e vingança interminável, em que a agressão nunca se encerra; a fim de encerrar esse ciclo, surge o mecanismo da vítima expiatória: a comunidade volta-se toda contra apenas uma pessoa, que concentra todo mal em si mesma, e a sacrifica, com a finalidade de expurgar para o divino a violência e, com isso, preveni-la. A partir de mitos gregos, rituais africanos, ameríndios e outras provas, pretende mostrar que a estrutura de todas as sociedades humanas -- e todos os seus rituais -- se explicam a partir do mecanismo da vítima expiatória. Depois fui para o Geertz. O Fabs tinha me advertido que talvez esse não fosse o primeiro livro. De fato, não me atraiu em nada o autor. Embora deveras inteligente em argumentação e bastante criativo, Geertz não me acrescentou muita coisa. Mas não descarto ainda o autor. Por fim, Mauss; interessantíssima sua tese sobre a dádiva, transbordando da perspectiva utilitarista para explicar as relações de trocas. Tem valor de clássico.
Literaturas...
Graciliano Ramos, "Vidas Secas"
Rubem Fonseca, "A Grande Arte"
Primo Levi, "É isto um homem?"
Ricardo Timm de Souza, "Ocaso: contos de entreluz"
Emily Bronte, "O Morro dos Ventos Uivantes"
"Vidas Secas" é daqueles livros que nos traumatizam durante a adolescência. É que não é um livro para ser lido na adolescência. Ou, pelo menos, não com o tipo de ensino que temos na literatura. Enclausurada no quadro disciplinar do ensino médio, a literatura perde seu enraizamento histórico-factual e político que lhe dá densidade e fixa-se obsessivamente no aspecto estético, prendendo-se a detalhes que o adolescente geralmente não está nem um pouco interessado. Com isso, "Vidas Secas" vira uma leitura arrastada, densa e monótona. É, porém, um belo livro, em que a clareza da "nudez" da vida no sertão fica exposta na sua brutalidade. "A Grande Arte", de Rubem Fonseca, é um divertido romance policial, porém sem grande aprofundamento nas questões (embora longe de livros mais vulgares como alguns best-sellers que andam por aí). Prefiro, por enquanto, Rubem contista, na sua exploração insaciável da ambivalência humana. "É isto um homem?" é um relato sufocante de Auschwitz, retratando na mais crua narração até onde pode ir a perversidade humana. Por outro lado, é surpreendente a lucidez -- e até, por vezes, a "contenção" -- da prosa de Levi, que jamais se utiliza de qualquer "expressionismo" na apresentação de situações absolutamente inimigináveis do campo de concentração. "Ocaso", recente lançamento do amigo Ricardo Timm de Souza, foi lido pela segunda vez (tenho a sorte de ter ganho uma edição própria e inédita!). Surpreende a delicadeza com que Ricardo se move entre as palavras, atuando como um verdadeiro cirurgião na elaboração de sua prosa. As metáforas são cuidadosamente construídas e encerradas de forma seca e não-óbvia, levando o leitor à perplexidade (e, portanto, à reflexão e ao pensamento). Em estilo quase oposto ao que caracteriza seus já reconhecidos ensaios filosóficos (mais do que o normal, menos do que o devido), onde mantém uma estrutura expressionista e tece longa e profunda argumentação, aqui o tiro é de precisão, um só, sem repetição, como o "ataque final" da aranha que abocanha um inseto. Tudo é dito na mais extrema simplicidade e, justamente por isso, na mais extrema profundidade. Por fim, minha última leitura: "O Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Bronte, um belíssimo romance que trabalha como poucos o ressentimento e os efeitos devastadores da lógica da vingança sobre o ser humano.
Psicanálises...
Nasio, "7 Lições sobre Jacques Lacan"
Orlando Cruxên, "Sublimação"
Confesso que não me causaram maiores impressões nenhum desses dois livros de psicanálise. Nasio parece demasiado imerso em Lacan de forma a não conseguir traduzir ao leitor, muitas vezes, o cerne das questões que põe. A impressão que fica é que falta rigor, consistência, que algumas questões teóricas fundamentais são superadas a soco, ou, até pior, com certa a-criticidade. Porém foi apenas minha primeira leitura sobre Lacan (as anteriores, embora por vezes se referissem a ele, eram sobre Freud). Nasio parece mais interessado em justificar seu saber com base na experiência "clínica", praticamente afirmando que "o importante é que funciona, não sabemos nada sobre isso". Enfim. O livro de Cruxên sobre "Sublimação", com certo caráter introdutório, também foi frustrante no seu desenvolvimento. Considero a temática como fundamental, especialmente porque a sublimação consta em Freud como um meio de escapar da violência e, simultaneamente, da repressão.
Marcadores: Antropologia, Libros, Literárias, Psicanálise, Violência
quinta-feira, agosto 13, 2009
DEZ PROPOSTAS QUE EU GOSTARIA DE VER NO(A) PRÓXIMO(A) CANDIDATO(A) A PRESIDENTE
1 - Transformação do Programa Bolsa-Família em Programa de Renda Básica da Cidadania, nos termos da Lei n.º 10.835/2005, implementando a renda mínima de R$ 1.000,00 para todos os brasileiros;
2 - Redução da função de cargos em comissão para um patamar máximo de 5% de cada quadro de todos os poderes e, ao mesmo tempo, mitigação da estabilidade do servidor público apenas contra demissão por enxugamento de custos, ficando submetida à exigência de eficiência a ser aferida em avaliações periódicas;
3 - Auditoria com prazo de um ano para verificação de todas as instituições governamentais e não-governamentais que recebem verbas públicas, cortando ou redesenhando pelo menos 80% delas;
4 - Intervenção direta do Governo Federal para aporte de moradia decente, saneamento básico e postos de saúde em todas as favelas, vilas e palafitas espalhadas pelo Brasil;
5 - Se necessário (considerados os cortes administrativos), tributação forte sobre grandes heranças e pessoas que ganham acima de 100 mil, criando pelo menos mais umas 5 faixas de imposto de renda;
6 - Intervenção federal, se necessário até com auxílio militar, na Região Norte, especialmente nas áreas da Amazônia, com a finalidade de desarticular grileiros e coronéis que dominam por meio de milícias a região e provocam danos humanos e ambientais;
7 - Proposta de extinção da polícia militar e transformação em polícia única, dividida em polícia comunitária e polícia investigativa e com um sistema nacional de informações totalmente integrado;
8 - Descriminalização das drogas, com a substituição por um modelo de controle público de venda em farmácia similar a remédios psiquiátricos, restrições ao uso público similares às do cigarro e programa de redução de danos;
9 - Proposta de anistia de jovens envolvidos com tráfico de drogas que queiram sair do tráfico, oferecendo benefícios similares ao programa de proteção de testemunhas;
10 - Investimento maciço em educação, com uma mudança de estilo no ensino que envolva o reconhecimento ético e a valorização das habilidades individuais (físicas e intelectuais), com as mais variadas tentativas de descobrir o talento de cada um. As pastas de esporte e cultura passariam para o interior da educação.
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quarta-feira, agosto 12, 2009
A CANDIDATURA MARINA SILVA E O XADREZ DA ELEIÇÃO
TENHO EVITADO falar da sucessão de 2010 porque repudio o "jornalismo-Caras" da política que impregna nossos jornais e revistas. As análises da política se resumem a bate-bocas, encontros, acordos e trocas, ocupando todo cenário que deveria se preocupar com as questões essenciais, e não com moralismos e colunismo social. Se X ou Y é aliado de Z é um assunto que pode vir a ser importante, mas jamais substituir a discussão pela quantidade imensa de pautas que deveriam ocupar esse lugar: segurança pública, racismo, sustentabilidade, extrema pobreza, distribuição fundiária, separação do público e privado, etc.
A possibilidade, no entanto, de uma frente que reuniria gente como Marina Silva, Cristovam Buarque e Fernando Gabeira, sem falar de apoiadores como Luiz Eduardo Soares e Marcos Rolim, não é desprezível. Como vocês podem ver, tratam-se de nomes que ganharam já alguns pontos aqui no blog por serem uma esquerda rejeitada pelo PT, embora por (muitas) vezes até mais interessante.
Os opositores da candidatura têm o seguinte perfil: a) são entusiastas xiitas do partido, acreditando que todo aquele que se opõe ao PT é um traidor (corrente de genealogia bastante evidente); b) são "pragmáticos" que acreditam ser necessária a união da esquerda desde o primeiro turno, e que a candidatura Dilma é imensamente mais viável que a de Marina, sendo aquela inclusive melhor candidata; c) céticos que consideram a candidatura como uma manobra da direita para desagregar a base de Lula e retomar o poder, usando Marina como uma espécie de fantoche. É só essa alternativa "c" que me interessa. E ela que me põe em dúvida. Tudo dependerá de como será construída essa candidatura.
Se Marina Silva conseguir trazer para seu grupo uma espécie de "esquerda idealista", sem as vinculações partidárias fortes com a cúpula do PT e o movimento sindical que geraram o "lado podre" do Governo Lula, é uma excelente candidata. Melhor que Dilma, inclusive. Apesar de certos elogios ao criacionismo que deixaram de cabelo em pé algumas pessoas, Marina se mostra uma inteligência lúcida, com vivência dos dramas da população pobre no Brasil e consciência plena do desafio ambiental que se avizinha (e Lula apenas ignora). Eventuais vinculações dela com evangélicos não podem ser demérito (a menos que meus amigos de esquerda ateus (como eu) também não apoiassem um presidente assumidamente católico) e excessos certamente seriam facilmente corrigidos pelo seu grupo de sustentação. Entre eles, vários com poderosas credenciais.
Apesar de considerar muito bom o Governo Lula, de forma que não me incomodaria muito votar em Dilma Roussef, é fato que a agenda ambiental anda totalmente esquecida e a eleição da senadora não poderia representar recuo nos demais itens sociais. Além disso, com o apoio de Gabeira e Buarque, entre outros, seria possível começar a fazer andar um projeto de "desintoxicação" da esfera pública brasileira, enfraquecendo as oligarquias. Atacar a corrupção, diga-se de passagem, é uma medida política de primeira ordem, que envolve uma posição política firme e traz uma infinidade de benefícios para o país, especialmente aos pobres. Marina representa uma "terceira via" real entre Dilma e Serra (ou Aécio), podendo até conseguir mobilizar - em alianças futuras - parte do PT e do PSDB e, com isso, liderar ambos e isolar o atraso (o artigo do Presidente do PV escrito esses dias na Folha trouxe algumas idéias tão semelhantes às escritas aqui que cheguei a cogitar a possibilidade de que tenha lido esse blog...). Em muitas outras questões, diga-se de passagem, é possível que um Governo Marina fosse mais radical que um Dilma: por exemplo, na educação, na questão fundiária e na segurança pública.
O "se" vem de uma desconfiança concreta: o discurso de Gabeira, que até agora vem sendo o representante dessa "corrente", é apenas moralista. No fundo, ataca a corrupção por meio da eleição de bodes expiatórios e se alia a forças conservadores que são os verdadeiros motores do processo. Se a candidatura Marina (existindo, claro!) for para esse lado, não terá meu voto. Aguardemos.
A possibilidade, no entanto, de uma frente que reuniria gente como Marina Silva, Cristovam Buarque e Fernando Gabeira, sem falar de apoiadores como Luiz Eduardo Soares e Marcos Rolim, não é desprezível. Como vocês podem ver, tratam-se de nomes que ganharam já alguns pontos aqui no blog por serem uma esquerda rejeitada pelo PT, embora por (muitas) vezes até mais interessante.
Os opositores da candidatura têm o seguinte perfil: a) são entusiastas xiitas do partido, acreditando que todo aquele que se opõe ao PT é um traidor (corrente de genealogia bastante evidente); b) são "pragmáticos" que acreditam ser necessária a união da esquerda desde o primeiro turno, e que a candidatura Dilma é imensamente mais viável que a de Marina, sendo aquela inclusive melhor candidata; c) céticos que consideram a candidatura como uma manobra da direita para desagregar a base de Lula e retomar o poder, usando Marina como uma espécie de fantoche. É só essa alternativa "c" que me interessa. E ela que me põe em dúvida. Tudo dependerá de como será construída essa candidatura.
Se Marina Silva conseguir trazer para seu grupo uma espécie de "esquerda idealista", sem as vinculações partidárias fortes com a cúpula do PT e o movimento sindical que geraram o "lado podre" do Governo Lula, é uma excelente candidata. Melhor que Dilma, inclusive. Apesar de certos elogios ao criacionismo que deixaram de cabelo em pé algumas pessoas, Marina se mostra uma inteligência lúcida, com vivência dos dramas da população pobre no Brasil e consciência plena do desafio ambiental que se avizinha (e Lula apenas ignora). Eventuais vinculações dela com evangélicos não podem ser demérito (a menos que meus amigos de esquerda ateus (como eu) também não apoiassem um presidente assumidamente católico) e excessos certamente seriam facilmente corrigidos pelo seu grupo de sustentação. Entre eles, vários com poderosas credenciais.
Apesar de considerar muito bom o Governo Lula, de forma que não me incomodaria muito votar em Dilma Roussef, é fato que a agenda ambiental anda totalmente esquecida e a eleição da senadora não poderia representar recuo nos demais itens sociais. Além disso, com o apoio de Gabeira e Buarque, entre outros, seria possível começar a fazer andar um projeto de "desintoxicação" da esfera pública brasileira, enfraquecendo as oligarquias. Atacar a corrupção, diga-se de passagem, é uma medida política de primeira ordem, que envolve uma posição política firme e traz uma infinidade de benefícios para o país, especialmente aos pobres. Marina representa uma "terceira via" real entre Dilma e Serra (ou Aécio), podendo até conseguir mobilizar - em alianças futuras - parte do PT e do PSDB e, com isso, liderar ambos e isolar o atraso (o artigo do Presidente do PV escrito esses dias na Folha trouxe algumas idéias tão semelhantes às escritas aqui que cheguei a cogitar a possibilidade de que tenha lido esse blog...). Em muitas outras questões, diga-se de passagem, é possível que um Governo Marina fosse mais radical que um Dilma: por exemplo, na educação, na questão fundiária e na segurança pública.
O "se" vem de uma desconfiança concreta: o discurso de Gabeira, que até agora vem sendo o representante dessa "corrente", é apenas moralista. No fundo, ataca a corrupção por meio da eleição de bodes expiatórios e se alia a forças conservadores que são os verdadeiros motores do processo. Se a candidatura Marina (existindo, claro!) for para esse lado, não terá meu voto. Aguardemos.
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terça-feira, agosto 11, 2009
O LIBERALISMO/GARANTISMO É MELHOR QUE NADA, MAS É POUCO
ALGUNS PODEM CONFUNDIR -- e de fato por vezes admito que não faço qualquer questão de desfazer a confusão -- a posição dos que criticam o liberalismo, a democracia representativa e o garantismo, considerando que para eles não há qualquer diferença entre democracia e totalitarismo. Por vezes, confesso que me divirto borrando essa fronteira. Mas são a mesma coisa?
Ora, nem mesmo aquele que talvez tenha traçado a mais radical genealogia do poder soberano - Giorgio Agamben - diz que são a mesma coisa. Em uma breve passagem de Homo Sacer, justamente o livro em que traça uma linha de continuidade entre democracia e totalitarismo, Agamben reconhece que não são ambos a mesma coisa (quem tem dúvida, confira as páginas 17 e 18 do livro). E, apesar disso, continua sustentando -- sinalando a necessidade de firmeza nesse aspecto -- que a matriz de ambos os fenômenos é a mesma, e é justamente isso que encaminha os Estados contemporâneos para a ruína. Nem mesmo Benjamin -- no final das contas, a inspiração principal de Agamben -- afirmou isso. O que Benjamin afirmou - e a realidade não cansa de comprovar -- é que, para os oprimidos, o estado de exceção é a regra. Intervenções policiais nos morros cariocas não cansam de comprovar, infelizmente pelo menos uma vez por semana, que a vida nua é morta sem que sequer ganhe uma nota de jornal.
E o liberalismo? Ora, evidente que o liberalismo é melhor que um autoritarismo direto, que um fascismo qualquer. Porém sua capa estritamente formal não é capaz de dar conta do problema da vida nua, do resto. Como o liberalismo se resume a uma proteção jurídica do cidadão, ele não é capaz de enfrentar os problemas reais que atuam nas frestas dessas regulações. Ou simplesmente ignoram-nas. Se o habeas corpus pode ser uma arma poderosa para algum grande empresário preso arbitrariamente, é certo que o pequeno traficante do morro está totalmente exposto ao poder diante de uma intervenção armada do BOPE. Essa diferença não é um pequeno detalhe a ser corrigido gradualmente: é a persistência inabalável, doentia e violenta da mesma lógica que reduz alguns a nada (lógica que em Auschwitz encontrou sua consumação máxima). Enquanto os juristas elaboram suas teorias igualitárias nas quais a isonomia é um processo já dado, a vida nua não cansa de atestar -- na sua realidade brutal e incontestável - que tudo isso é uma bela alucinação da realidade.
É a vida nua em todas as suas dimensões que sofre e exerce a violência mais intensa na nossa sociedade. Capturada fora pelo controle -- ou seja, incluída na sua exclusão, a-bandonada -- essa vida nua tem consciência do pouco valor que tem sua vida e, por isso, age como se tudo no mundo fosse descartável. Mata por um tênis. Tortura por dez reais. E, no lance seguinte, é eliminada como pó. Vida descartável que povoa nossas cidades; o "estranho" que canaliza justamente todo medo social. Atua como se fosse um trauma para a psicanálise: na incapacidade de suportarmos sua intensidade, o reprimimos/recalcamos e ele retorna ainda mais intenso. Repete-se doentiamente, irrigado de pulsão de morte. É bem possível que a psicanálise seja devedora de uma concepção de sujeito hoje insustentável; seu mérito, no entanto, é antes ter desvelado a inutilidade da repressão do "sombrio" em nós mesmos, abrindo a possibilidade de pensarmos nas nossas projeções e no retorno daquilo que foi varrido para baixo do tapete.
Para essa vida nua, para essa violência incontrolável que vivemos e não tem data de finalizar (o suposto "Primeiro Mundo", apesar de ter reduzido significamente seus níveis, ainda tem que viver com seus traumas em forma de terrorismos), o liberalismo não tem resposta. Na sua capa de proteção formal não cabe analisar a realidade das relações sociais, mas sim reduzi-la a jogos jurídicos em que que tudo se resume a uma questão de acesso à justiça ou à esfera pública. O pretexto da "sociedade aberta" -- argumento poderoso e inteligente, reconheço -- não é suficiente para justificar a espessura formal da democracia; é um pensamento sem temporalidade, sem história, saído da mente de algum pensador de gabinete insensível com a morte que bate à sua porta. Uma "sociedade aberta" tolera o puro e simples assassinato, ainda que justificado sob os eufemismos da "miséria" ou "injustiça social"? Ou se trata apenas de um discurso de fachada que encobre o fato de poder -- esse sim concreto e real -- ao formulá-lo em esquemas abstratos e metafísicos?
Quando não fazemos questão de dizer que o garantismo - ou o liberalismo - é melhor que o totalitarismo é para realçar aquilo que esses discursos são na realidade: farsas. Seus pretextos, suas escusas e suas alucinações encobrem aquilo que é visível a olho nu: vivemos em um mundo extremamente violento em que alguns são reduzidos a nada, vida matável. E eles não são exceção. São milhões e milhões que se empilham ao redor do mundo. Para eles, o liberalismo só promete a espera.
Quando não fazemos questão de dizer que o garantismo - ou o liberalismo -- é melhor que totalitarismo, repito, é porque por vezes os liberais/garantistas fazem o mesmo discurso que por vezes criticam: o do "fim da história". Sua discordância é só com os o "neoliberalismo", mas estão de acordo com o fim das "utopias". O pensamento fica estacionado no mesmo ponto, apenas se discorda qual é o ponto. É preciso mais ousadia. Precisamos pensar além do "niilismo pós-moderno". Não para reafirmar aquilo que ruiu por conta própria (sou dos acham que a Shoah era destino, e não acidente, da Modernidade), mas para pensar além -- jamais interromper a possibilidade que o pensamento tem de alcançar pontos outros em relação ao que vivemos. O conservadorismo é o ethos desses anos 90/2000, ainda que por vezes um conservadorismo que glorifica o próprio vazio, sacralizando aquilo que poderia ser a nossa maior chance profanatória. É preciso ir adiante. O liberalismo é pouco para nós.
segunda-feira, agosto 10, 2009
TÉDIO
A gripe. Cabeça. E o tédio.
O tédio. A gripe. Cabeça.
Cabeça. A gripe. Tédio.
A gripe. Cabeça. E o tédio.
O tédio. A gripe. Cabeça.
Cabeça. A gripe. Tédio.
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sábado, agosto 08, 2009
A SIMETRIA DE PODER NO JOGO DO AMOR
CONTINUO MINHA REFLEXÃO sobre amor e jogos de poder. Sustentava, alguns posts abaixo, que nosso erotismo brinca com jogos de poder, como, de certa forma, o Marquês de Sade entreviu. Eros profana o poder. Desenvolvo agora:
Me parece que, desde alguns séculos -- talvez desde o surgimento do amor romântico, mas não tenho elementos suficientes para sustentar com precisão --, as relações de sedução entre homem e mulher são cada vez mais razoavelmente simétricas. Essa simetria se consolida definitivamente com a eclosão de 68 e o movimento feminista, que libera a mulher das últimas amarras até então existentes. O processo de reconhecimento da mulher ainda está em desenvolvimento, mas de certa forma hoje podemos dizer que está em vias de crescimento, e não o oposto. É com alguma dificuldade que se fala, pelo menos publicamente, que mulher deve lavar roupa ou fazer comida. E as coisas só tendem, cada vez mais, a se tornarem mais e mais vergonhosas de se dizer.
O problema é uma confusão entre a esfera do desejo com a esfera do trabalho. Se o movimento feminista é justo em afirmar que a mulher tem o direito de não ser apenas um corpo reprodutor, de não ter que cuidar exclusivamente da esfera doméstica, etc., por vezes acaba recaindo em análises demasiado simplistas na esfera do desejo.
Provavelmente por razões biológicas, o homem (mais forte) deve ter saído das cavernas para caçar enquanto a mulher fazia o trabalho interno. É engraçado quando comparamos a diferença de percepção de uma sala entre um homem e uma mulher. Enquanto o homem normalmente foca um objeto, por exemplo um sofá (meu caso), a mulher é capaz de, em um rápido olhar, perceber toda ambiência, dos quadros e objetos de decoração até a iluminação. A busca do alvo da caça, no homem, deve ter dado uma visão distinta da mulher, que consegue perceber as coisas de modo mais global. Não há nada de errado em perceber que, com o tempo, essa divisão de funções acabou gerando um arranjo assimétrico de poder, colocando a mulher na posição de inferioridade na oposição (o "falocentrismo" da nossa cultura, que Derrida tão bem abordou, é o retrato disso). E também não há nada de errado em reivindicar a dissolução dessa divisão razoavelmente contingente, uma vez que nós - enquanto humanos - somos já, desde sempre, uma prótese sobre aquilo que é "natural". Se fossemos "natureza", provavelmente estaríamos sobre árvores ou nas cavernas com nossos oturos parentes primatas. (Pretendia escrever, aliás, um post sobre isso a respeito do homossexualismo ser "contra a natureza". Virá.) Se algum dia a divisão de trabalho teve razão de ser, hoje não faz mais qualquer sentido. A própria distinção entre gêneros pode ser dissolvida na artificialidade que é o humano. Por isso, me considero um feminista.
Não raro, no entanto, as feministas acabam transplantando essa questão do poder para a ordem do desejo. E aqui creio que erram feio. Porque, na ordem do desejo, as relações entre homem e mulher são praticamente simétricas hoje em dia. Os jogos do amor são jogos, via de regra, em paridade de armas.
Se formos até outro libertino do século XVII, Choderlos de Laclos, do ótimo romance "Relações Perigosas", vemos que a Marquesa de Merteuil e seu parceiro Valmont estão em igualdade de condições no jogo da sedução. A própria "incorruptível" Madame de Tourvel, na sua "incorruptibilidade" casta, tem muito poder no jogo de Eros. Quanto mais casta e difícil, mais poder acumula a mulher. Já em "Relações Perigosas" fica claro que a disputa no erotismo é uma disputa de submissão e suplício, baseada em estratégias capazes de fazer o parceiro se entregar na guerra, como o adversário pede rendição. Porém, ao se render, o parceiro inverte o pólo e passa a gozar na sua condição de submisso (ao contrário das demais relações de violência).
Desde que os últimos diques da repressão são muito poucos, hoje temos praticamente uma paridade de armas no jogo sedutor entre homem e mulher. Cada um joga com suas próprias cartas. Quem já saiu na noite, sabe que a mulher tem quase todas as cartas. Ela tem tanto poder que é capaz de dispensar 10 homens em uma só noite inspirada. Ou pode jogar como quiser, pode ficar com os 10. No "day after", há toda uma disputa a ser traçada em torno de quem vai ligar. Um jogo de sedução em que um submete o outro. Quem se rende, perde. Mas, ao perder, ganha. A estratégia varia a cada caso, porque o jogo de sedução é uma arte. É preciso toda uma técnica adequada para jogá-lo. De quando, onde, por quê. A distinção que existia até pouco tempo entre o "galinha" e a "vagabunda" (mais uma vez, oposição em que um dos termos é assimétrico) hoje perdeu quase totalmente sua força. No jogo erótico, a mulher domina tanto quanto é dominada. Suas técnicas são distintas das técnicas masculinas. E, por vezes, muito mais violentas e agressivas. Sempre mais sutis.
Ao desprezar esses dados, as feministas acabam soando ressentidas e deserotizadas (muitas das quais não gostam de homens, diga-se de passagem, e não há nada de errado nisso, contanto que não queiram impedir as que gostam de jogar seus jogos). É preciso separar a ordem do desejo, onde as coisas estão mais ou menos equiparadas, da ordem do trabalho e outras representações, na qual a mulher ainda está em posição inferiorizada. No campo do desejo, ela domina e é dominada das mais diversas formas. O campo erótico realmente brinca - no sentido de Agamben, de que "faz novo uso" -- com a diferença sexual. Ele não a sacraliza; mas também não a recusa. Apenas dela estabelece mais e mais usos, capazes de restituir aos amantes a possibilidade de viverem seus desejos. Em "Elogio da Profanação", Agamben certa hora diz que a "sociedade sem classes" não é aquela que extinguiu as classes, mas aprendeu a delas fazer novo uso. É o que ocorre com a diferença sexual. Dela aprendemos a fazer novo uso, sem extingui-la. Brincando numa zona anterior à do sujeito e do objeto, o erotismo restitui a diferença sexual aos corpos, fazendo dela um jogo de sedução e poder violento e implacável, mas no qual, por vezes, todas as partes podem vencer ao final.
sexta-feira, agosto 07, 2009
TUDO COM ELE
TODA RESPONSABILIDADE pela formação da equipe do Madrid agora está com Mauro Pellegrini, seu treinador. Florentino Perez cumpriu a promessa e fez um novo conjunto galáctico, contando com alguns dos melhores do mundo (só o Barça é páreo). Com as contratações de Kaká, Cristiano Ronaldo, Benzema, Raúl Albiol e Xabi Alonso, o Madrid ganha aquele toque que faltou nas temporadas passadas: a presença de jogadores que podem desequilibrar sozinhos partidas decisivas.
Já tinha percebido que com o plantel da temporada 2008/2009 era impossível competir em igualdade nos parâmetros continentais. O único jogador de exceção era Arjen Robben, e ainda assim o ponta-esquerda holandês é discutível. O que o Madrid não tinha nas temporadas anteriores -- opções de banco, jogadores jovens -- então sobrava; o que tinha antes -- grandes craques --, visivelmente faltava. E faltou.
Hoje, o Real Madrid manteve sua base e contratou grandes reforços. Kaká e Cristiano dispensam apresentação. Benzema pode ser um grande centroavante, dividindo a posição com o sempre efetivo Nistelrooy (que é uma incógnita por voltar de lesão). A suspeição de que Perez não traria volantes e zagueiros não se confirmou: contratou Xabi Alonso, excelente meio campo do Liverpool, e Albiol, zagueiro do Valencia e da seleção espanhola. A equipe que eu montaria (mas provavelmente não será assim) seria: Casillas; Ramos, Pepe, Albiol e Marcelo; Xabi Alonso e Gago; Ronaldo, Kaká e Robben; Benzema. No 4-2-3-1.
O importante, no entanto, não é tanto qual o esquema, mas a capacidade de Pellegrini de montar uma clara espinha dorsal na equipe que faça com que tenha um claro estilo de jogar, de modo a, quando houver substituições, o reserva já saiba sua posição. Com isso, a tendência é que o Madrid alcance o nível do Barcelona e lute por todos os títulos. Jogadores como Higuaín, Drenthe, Sneijder, Gago e Marcelo podem crescer bastante, já que são ainda bastante jovens. E o elenco ainda conta com os esforçados Lass, Diarra, Metzelder, entre outros, para completar. Sem falar em Guti e Raúl, cuja titularidade parece ter ficado bastante distante, mas que como jogadores de plantel podem fazer um belo serviço.
Tudo indica que, se Pellegrini acertar o alvo, teremos uma temporada em que os espanhóis retomarão a hegemonia perdida para os ingleses nas últimas temporadas.
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quinta-feira, agosto 06, 2009
EM CHAMAS
SÉRIO, CARO LEITOR: a pessoa não foto acima NÃO é o coringa; é a Governadora do Rio Grande do Sul.
A ação de improbidade administrativa promovida pelo Ministério Público Federal apenas revela um lado mais explícito, e que evitava abordar, da real situação política do RS: não somos menos corruptos que o resto do Brasil. Caiu, finalmente, o mito do gaúcho. Graças a Deus. Talvez assim consigamos começar a caminhar para frente, abandonando mitologias ressentidas e pensando a nossa política com realidade.
Quantas vezes escrevi por aqui que é um núcleo político, e não o Governador, que detém o poder no RS? Pois bem, dos réus da ação cinco (se não me engano) foram Presidentes da Assembléia Legislativa e um deles é hoje Presidente do Tribunal de Contas (...!). Hoje aparece a parte mais suja, que evito abordar por não ter provas e não acusar injustamente, das estratégias fisiológicas e assistencialistas que são o real motor da política gaúcha. Yeda caiu por falta de cobertura e levou uma patota com ela.
De qualquer forma, se o gaúcho não pode mais se vangloriar de ser menos corrupto que os demais, pelo menos pode se orgulhar de ter levado a cabo um experimento político inédito: ser governado por uma psicopata.
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quarta-feira, agosto 05, 2009
O NEOLIBERALISMO E A CRENÇA NO ESTADO
SEMPRE ME INCOMODEI com o termo "neoliberalismo". Primeiro, porque tenho horror a chavões. Apesar disso, alguns chavões são verdadeiros (por exemplo, só pobre e preto vai para a cadeia). É que esse chavão me parecia com baixo poder reflexivo e estilo slogan, bloqueando o pensamento a respeito. Segundo, porque chamar a combinação de teologia do mercado com conservadorismo social típica dos anos 80 e 90 com as idéias defendidas por gente como Dewey, Rawls, Rorty e Dworkin me pareceu ofensivo e injusto. Já visitei o tema por aqui diversas vezes. E, no entanto, volto a ele.
Acontece que o termo neoliberalismo é, na verdade, usado por grupos de esquerda com nostalgia do Estado. Os pensadores que utilizam a expressão -- geralmente acompanhada da "globalização" -- são entusiastas da idéia de que quanto mais atividade vier do Estado, melhor. Um Estado grande e forte, como o Estado de Bem-Estar europeu, representaria o progresso humano e a chance de emancipação dos mais pobres, sobretudo a partir de uma instituição gradual de mais e mais direitos. O "neoliberalismo" teria cortado o fluxo de reconhecimento que aumentava desde o pós-Guerra e instituído o retorno da barbárie, do cada-um-por-si, proporcionando mais desemprego, pobreza e violência, tudo em busca do lucro individual.
Eu não nego que essa descrição seja verdadeira. No entanto, penso que é demasiado simplista. E esse simplismo aparece quando surge a dificuldade de analisar os movimentos de 68 e suas conseqüências.
Me parece que o grande erro da esquerda -- tanto a comunista quanto a social-democrata -- é a crença na neutralidade do Estado. Para os comunistas, o Estado pode ser apropriado pelo proletariado e, mediante um governo de ditadura, dar-se-iam as condições necessárias para a implementação do comunismo, com a ausência de Estado. Para os social-democratas, a justiça social passa pelo Estado a partir de arranjos jurídicos que fortalecem direitos de cidadania e provocam a emancipação geral. Ambos, portanto, concebem a estrutura do Estado como algo que, em si mesmo, não tem problemas. É verdade que os comunistas postulam, ao fim, sua abolição, mas a etapa intermediária (do "socialismo") pressupõe uma concentração absoluta. Bastaria que as pessoas certas se apropriassem do poder para que então se pudesse construir a felicidade humana. O recuo do Estado a partir dos anos 80, portanto, representaria uma regressão.
O equívoco para mim é muito claro: a idéia de que o público é o mesmo que o estatal. Toda crítica que inspirou os movimentos de 68 é mais radical do que o marxismo ortodoxo e a social-democracia. Autores como Foucault, Deleuze e Marcuse representam, em outros termos, uma crítica mais devastadora das estruturas sociais que pressupõe a idéia de que a apropriação do Estado, por si só, é insuficiente para dar conta dos complexos problemas que se apresentam a nós. A Escola de Frankfurt, aliás, já tinha indicado esse caminho. Esses autores -- de inspiração anarquista -- haviam demonstrado que as estruturas estatais, em si mesmas, são perniciosas, e que era preciso pensar emancipação fora do Estado. Hoje, com a genealogia arrasadora que Giorgio Agamben vem traçando do Poder Soberano, é quase impossível não concordar com isso. É preciso pensar o público fora do Estado. Autores como Nancy ou mesmo Agamben têm insistido na dimensão do comum para reavivar a dimensão utópico-messiânica sem cair no risco do totalitarismo (a grande armadilha que caiu a esquerda, diz Agamben bem no início do "Homo Sacer", foi ter subestimado o papel do Estado, relegando-o ao status de "superestrutura").
Tudo isso é visível na recente decisão de Hugo Chavez de não renovar concessões de televisões golpistas. Chavez -- que representa tudo que há de mais anacrônico em termos de discurso de esquerda -- embriagou-se no discurso do neoliberalismo e da globalização. Como os nostálgicos, ele vê os anos 80/90 como o avanço de uma desregulação geral que provocou desemprego, fome e miséria. E, como grande parte da esquerda, acredita que a solução é voltar a apostar em um Estado forte, governado pelas pessoas certas, para implementar estratégias de emancipação social na paupérrima América Latina. Qual é o problema? O problema é justamente que não é possível que uma posição realmente de esquerda seja contra a liberdade de informação, seja de que caráter for a informação. Uma pessoa de esquerda deve defender o direito de dizer o que for, deixando aos conservadores a tarefa da censura. Não é justificável - sob qualquer argumento - que alguém que pensa a emancipação humana seja contrário à emissão de um discurso, seja qual for o discurso.
O erro de Chavez é acreditar que o centralizado, o estatal, representa o público, e por isso e melhor que o privado. Nessas situações-limite é que fica muito difícil manter a coerência em defender uma medida que politicamente é insustentável. É insustentável porque vem de um erro conceitual. Se a esquerda marxista ortodoxa não fosse ideológica, se tivesse lido Foucault ou Adorno, saberia que a solução não passa pelo Estado ou por uma cartilha estratégica casual inventada no século XIX. Com isso, mantém uma posição indefensável por qualquer pessoa que não carregue ainda o germe fascista (ou restos dele) dentro de si.
Em contraponto à medida de Chavez, existe a Internet como um bloco de informações sem centro, sem controle e, por isso, altamente emancipatória. O choque que a Internet pode causar pode vir a ser ainda muito mais letal: ela está colocando em jogo o regime de propriedade ao permitir a circulação de arquivos. A Internet é a própria experiência do comum. Seu choque é muito mais radical do que televisões estatais. A incontrolabilidade da informação e a emergência da dádiva podem começar a fazer ruir o sistema virtual que encobre as relações reais de violência que se dão no nosso mundo.
Uma esquerda que se queira radical deveria -- antes de centralizar, verticalizar e manipular o poder -- elaborar mais e mais estratégias na direção do seu desaparecimento.
terça-feira, agosto 04, 2009
O GODOT DA ESFERA PÚBLICA
DIAS ATRÁS postei acerca do caso Sarney e da malha de interesses envolvidos por ali. Tentei me deter menos nos hipócritas da direita que praticam fatos semelhantes e vociferam com as calças cagadas do que em setores de centro, como Fernando Gabeira e Pedro Simon, e na extrema esquerda, que criticam a corrupção aliando-se às forças que são as verdadeiras propulsoras desse processo endógeno que se enraiza profundamente nas instituições brasileiras. Esses ingênuos (ou de má-fé, dependendo do caso) consideram a corrupção como um desvio de caráter, como se ela fosse algo resultado dos indivíduos particulares que estão no poder. Ora, quando a esquerda supostamente radical defende isso, é porque realmente a situação está triste.
Tudo que os liberais de direita e parte dos conservadores (a outra parte é pior) gostariam de afirmar, na sua visão de mundo, é que o indivíduo nasce sozinho, pronto e é plenamente responsável por tudo que faz. Bebendo na metafísica do contrato social, desenham um homem abstrato, espécie de Robinson Cruzoé, nascido em paridade com todos os demais, que compete com os demais em relação a objetivos socialmente partilhados. Diante dessa igualdade geral, cabe ao indivíduo batalhar pelo "sucesso" na vida. Se, por acaso, teve o azar de nascer pobre, por exemplo, só lhe resta acatar sua condição e lavar os pratos com água fria de algum restaurante que serve caviar para "bem-sucedidos" que chegam de Porsche ao estacionamento. Se descumpre essas regras, é porque é um mau-caráter, alguém desprezível, e por isso deve pagar a conta para a sociedade (que é o Bem). As regras são todas justas e todos são iguais. Nessa visão da realidade, tudo é extremamente simples: os bons são bons e os maus são maus; o mundo se divide entre bandidos e mocinhos, ou, na sua versão contemporânea, entre bandidos e cidadãos de bem.
Tudo narrado em forma direta e explícita parece, realmente, caricato. E é. Como essa alucinação recobre a realidade é algo que dá o que pensar. Porque o real, a facticidade, o concreto, invade nossos olhos sem pedir licença (como um cisco, diria Adorno). Ele faz com que essa história da carochinha volte para o seu lugar -- o de mito, ficção, alucinação. Qualquer pessoa com mínimo bom senso (infelizmente, não são tantas assim; a "ideologia" também está na direita) é capaz de perceber que as coisas não são tão simples e que essa descrição da realidade é uma piada. E, no entanto, ela subjaz a grande parte das análises políticas, econômicas e jurídicas dos nossos dias.
Que a suposta extrema esquerda compactue com isso é sintoma de que perdeu qualquer sentido seu discurso. Se o indivíduo do iluminismo é uma pura ficção, se somos atravessados desde sempre pelo social (do contrário, seríamos apenas primatas em cima de árvores ou dentro das cavernas), não é possível que a leitura de realidade se resuma a um problema pontual, de caráter, como se a esfera pública já estivesse aí, apenas precisasse de "bons" sujeitos. Não é possível que Fernando Gabeira pense isso. Não é possível que não identifique raízes mais profundas da corrupção; entre elas, sem dúvida, a própria ausência de uma esfera pública.
No Brasil, o que temos são oligarquias que estendem seus tentáculos das grandes fazendas até o mercado financeiro, passando pela mídia, pelas indústrias e pelos serviços em geral. Sarney é apenas uma mísera parte desse conglomerado que envolve inclusive os grandes jornais e emissoras de televisão que o criticam. É um bode expiatório que perdeu a cobertura. Sacrificar Sarney é, nesse momento, legitimar o sistema que tem a corrupção na raiz. Por mim, Sarney jamais se reelegeria a qualquer coisa. Porém seu sacrifício nesse momento vai apenas separar novamente o Senado, fazendo parecer que as coisas mudaram. Não mudaram. Nesse exato momento o paradoxo é que Sarney - o representante do pior no Brasil, da pré-Modernidade - é mais progressista que seus detratores moralistas, simplesmente porque abre caminho para que a esquerda tenha algum espaço, e com isso possa efetivar as parcas mudanças que vem efetivando no país. Os moralistas da extrema esquerda juntam-se ao coro da direita, que quer apenas sacrificar o bode expiatório, relegitimar o sistema, fortalecer o discurso midiático e associar a Lula a imagem de corrupção e falta de caráter, preparando o terreno para a poderosa campanha que se anuncia em favor de José Serra.
Criar uma esfera pública pressupõe, antes de conversinhas jurídicas e de "condições transcendentais do ato de fala", uma disputa pelo poder, que é realmente o que forma e conforma as relações sociais. Enquanto o conceito de público for simplesmente uma nhaca jurídica, o que temos é só a dimensão do privado disfarçada, caso do Brasil. A questão é: será a esfera pública possível? Se as relações são desde sempre permeadas pelo poder, se o que temos hoje em dia são, antes de democracias, plutocracias, é possível construir esse espaço de debate livre e persuasão racional?
Talvez a questão não seja como construir a esfera pública, construindo um consenso que permita redimensionar a questão do poder. Talvez a questão seja como implodir o poder, vivendo na mais redimida felicidade humana.