Mox in the Sky with Diamonds

sábado, agosto 08, 2009



A SIMETRIA DE PODER NO JOGO DO AMOR

CONTINUO MINHA REFLEXÃO sobre amor e jogos de poder. Sustentava, alguns posts abaixo, que nosso erotismo brinca com jogos de poder, como, de certa forma, o Marquês de Sade entreviu. Eros profana o poder. Desenvolvo agora:
Me parece que, desde alguns séculos -- talvez desde o surgimento do amor romântico, mas não tenho elementos suficientes para sustentar com precisão --, as relações de sedução entre homem e mulher são cada vez mais razoavelmente simétricas. Essa simetria se consolida definitivamente com a eclosão de 68 e o movimento feminista, que libera a mulher das últimas amarras até então existentes. O processo de reconhecimento da mulher ainda está em desenvolvimento, mas de certa forma hoje podemos dizer que está em vias de crescimento, e não o oposto. É com alguma dificuldade que se fala, pelo menos publicamente, que mulher deve lavar roupa ou fazer comida. E as coisas só tendem, cada vez mais, a se tornarem mais e mais vergonhosas de se dizer.
O problema é uma confusão entre a esfera do desejo com a esfera do trabalho. Se o movimento feminista é justo em afirmar que a mulher tem o direito de não ser apenas um corpo reprodutor, de não ter que cuidar exclusivamente da esfera doméstica, etc., por vezes acaba recaindo em análises demasiado simplistas na esfera do desejo.
Provavelmente por razões biológicas, o homem (mais forte) deve ter saído das cavernas para caçar enquanto a mulher fazia o trabalho interno. É engraçado quando comparamos a diferença de percepção de uma sala entre um homem e uma mulher. Enquanto o homem normalmente foca um objeto, por exemplo um sofá (meu caso), a mulher é capaz de, em um rápido olhar, perceber toda ambiência, dos quadros e objetos de decoração até a iluminação. A busca do alvo da caça, no homem, deve ter dado uma visão distinta da mulher, que consegue perceber as coisas de modo mais global. Não há nada de errado em perceber que, com o tempo, essa divisão de funções acabou gerando um arranjo assimétrico de poder, colocando a mulher na posição de inferioridade na oposição (o "falocentrismo" da nossa cultura, que Derrida tão bem abordou, é o retrato disso). E também não há nada de errado em reivindicar a dissolução dessa divisão razoavelmente contingente, uma vez que nós - enquanto humanos - somos já, desde sempre, uma prótese sobre aquilo que é "natural". Se fossemos "natureza", provavelmente estaríamos sobre árvores ou nas cavernas com nossos oturos parentes primatas. (Pretendia escrever, aliás, um post sobre isso a respeito do homossexualismo ser "contra a natureza". Virá.) Se algum dia a divisão de trabalho teve razão de ser, hoje não faz mais qualquer sentido. A própria distinção entre gêneros pode ser dissolvida na artificialidade que é o humano. Por isso, me considero um feminista.
Não raro, no entanto, as feministas acabam transplantando essa questão do poder para a ordem do desejo. E aqui creio que erram feio. Porque, na ordem do desejo, as relações entre homem e mulher são praticamente simétricas hoje em dia. Os jogos do amor são jogos, via de regra, em paridade de armas.
Se formos até outro libertino do século XVII, Choderlos de Laclos, do ótimo romance "Relações Perigosas", vemos que a Marquesa de Merteuil e seu parceiro Valmont estão em igualdade de condições no jogo da sedução. A própria "incorruptível" Madame de Tourvel, na sua "incorruptibilidade" casta, tem muito poder no jogo de Eros. Quanto mais casta e difícil, mais poder acumula a mulher. Já em "Relações Perigosas" fica claro que a disputa no erotismo é uma disputa de submissão e suplício, baseada em estratégias capazes de fazer o parceiro se entregar na guerra, como o adversário pede rendição. Porém, ao se render, o parceiro inverte o pólo e passa a gozar na sua condição de submisso (ao contrário das demais relações de violência).
Desde que os últimos diques da repressão são muito poucos, hoje temos praticamente uma paridade de armas no jogo sedutor entre homem e mulher. Cada um joga com suas próprias cartas. Quem já saiu na noite, sabe que a mulher tem quase todas as cartas. Ela tem tanto poder que é capaz de dispensar 10 homens em uma só noite inspirada. Ou pode jogar como quiser, pode ficar com os 10. No "day after", há toda uma disputa a ser traçada em torno de quem vai ligar. Um jogo de sedução em que um submete o outro. Quem se rende, perde. Mas, ao perder, ganha. A estratégia varia a cada caso, porque o jogo de sedução é uma arte. É preciso toda uma técnica adequada para jogá-lo. De quando, onde, por quê. A distinção que existia até pouco tempo entre o "galinha" e a "vagabunda" (mais uma vez, oposição em que um dos termos é assimétrico) hoje perdeu quase totalmente sua força. No jogo erótico, a mulher domina tanto quanto é dominada. Suas técnicas são distintas das técnicas masculinas. E, por vezes, muito mais violentas e agressivas. Sempre mais sutis.
Ao desprezar esses dados, as feministas acabam soando ressentidas e deserotizadas (muitas das quais não gostam de homens, diga-se de passagem, e não há nada de errado nisso, contanto que não queiram impedir as que gostam de jogar seus jogos). É preciso separar a ordem do desejo, onde as coisas estão mais ou menos equiparadas, da ordem do trabalho e outras representações, na qual a mulher ainda está em posição inferiorizada. No campo do desejo, ela domina e é dominada das mais diversas formas. O campo erótico realmente brinca - no sentido de Agamben, de que "faz novo uso" -- com a diferença sexual. Ele não a sacraliza; mas também não a recusa. Apenas dela estabelece mais e mais usos, capazes de restituir aos amantes a possibilidade de viverem seus desejos. Em "Elogio da Profanação", Agamben certa hora diz que a "sociedade sem classes" não é aquela que extinguiu as classes, mas aprendeu a delas fazer novo uso. É o que ocorre com a diferença sexual. Dela aprendemos a fazer novo uso, sem extingui-la. Brincando numa zona anterior à do sujeito e do objeto, o erotismo restitui a diferença sexual aos corpos, fazendo dela um jogo de sedução e poder violento e implacável, mas no qual, por vezes, todas as partes podem vencer ao final.

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