O GODOT DA ESFERA PÚBLICA
DIAS ATRÁS postei acerca do caso Sarney e da malha de interesses envolvidos por ali. Tentei me deter menos nos hipócritas da direita que praticam fatos semelhantes e vociferam com as calças cagadas do que em setores de centro, como Fernando Gabeira e Pedro Simon, e na extrema esquerda, que criticam a corrupção aliando-se às forças que são as verdadeiras propulsoras desse processo endógeno que se enraiza profundamente nas instituições brasileiras. Esses ingênuos (ou de má-fé, dependendo do caso) consideram a corrupção como um desvio de caráter, como se ela fosse algo resultado dos indivíduos particulares que estão no poder. Ora, quando a esquerda supostamente radical defende isso, é porque realmente a situação está triste.
Tudo que os liberais de direita e parte dos conservadores (a outra parte é pior) gostariam de afirmar, na sua visão de mundo, é que o indivíduo nasce sozinho, pronto e é plenamente responsável por tudo que faz. Bebendo na metafísica do contrato social, desenham um homem abstrato, espécie de Robinson Cruzoé, nascido em paridade com todos os demais, que compete com os demais em relação a objetivos socialmente partilhados. Diante dessa igualdade geral, cabe ao indivíduo batalhar pelo "sucesso" na vida. Se, por acaso, teve o azar de nascer pobre, por exemplo, só lhe resta acatar sua condição e lavar os pratos com água fria de algum restaurante que serve caviar para "bem-sucedidos" que chegam de Porsche ao estacionamento. Se descumpre essas regras, é porque é um mau-caráter, alguém desprezível, e por isso deve pagar a conta para a sociedade (que é o Bem). As regras são todas justas e todos são iguais. Nessa visão da realidade, tudo é extremamente simples: os bons são bons e os maus são maus; o mundo se divide entre bandidos e mocinhos, ou, na sua versão contemporânea, entre bandidos e cidadãos de bem.
Tudo narrado em forma direta e explícita parece, realmente, caricato. E é. Como essa alucinação recobre a realidade é algo que dá o que pensar. Porque o real, a facticidade, o concreto, invade nossos olhos sem pedir licença (como um cisco, diria Adorno). Ele faz com que essa história da carochinha volte para o seu lugar -- o de mito, ficção, alucinação. Qualquer pessoa com mínimo bom senso (infelizmente, não são tantas assim; a "ideologia" também está na direita) é capaz de perceber que as coisas não são tão simples e que essa descrição da realidade é uma piada. E, no entanto, ela subjaz a grande parte das análises políticas, econômicas e jurídicas dos nossos dias.
Que a suposta extrema esquerda compactue com isso é sintoma de que perdeu qualquer sentido seu discurso. Se o indivíduo do iluminismo é uma pura ficção, se somos atravessados desde sempre pelo social (do contrário, seríamos apenas primatas em cima de árvores ou dentro das cavernas), não é possível que a leitura de realidade se resuma a um problema pontual, de caráter, como se a esfera pública já estivesse aí, apenas precisasse de "bons" sujeitos. Não é possível que Fernando Gabeira pense isso. Não é possível que não identifique raízes mais profundas da corrupção; entre elas, sem dúvida, a própria ausência de uma esfera pública.
No Brasil, o que temos são oligarquias que estendem seus tentáculos das grandes fazendas até o mercado financeiro, passando pela mídia, pelas indústrias e pelos serviços em geral. Sarney é apenas uma mísera parte desse conglomerado que envolve inclusive os grandes jornais e emissoras de televisão que o criticam. É um bode expiatório que perdeu a cobertura. Sacrificar Sarney é, nesse momento, legitimar o sistema que tem a corrupção na raiz. Por mim, Sarney jamais se reelegeria a qualquer coisa. Porém seu sacrifício nesse momento vai apenas separar novamente o Senado, fazendo parecer que as coisas mudaram. Não mudaram. Nesse exato momento o paradoxo é que Sarney - o representante do pior no Brasil, da pré-Modernidade - é mais progressista que seus detratores moralistas, simplesmente porque abre caminho para que a esquerda tenha algum espaço, e com isso possa efetivar as parcas mudanças que vem efetivando no país. Os moralistas da extrema esquerda juntam-se ao coro da direita, que quer apenas sacrificar o bode expiatório, relegitimar o sistema, fortalecer o discurso midiático e associar a Lula a imagem de corrupção e falta de caráter, preparando o terreno para a poderosa campanha que se anuncia em favor de José Serra.
Criar uma esfera pública pressupõe, antes de conversinhas jurídicas e de "condições transcendentais do ato de fala", uma disputa pelo poder, que é realmente o que forma e conforma as relações sociais. Enquanto o conceito de público for simplesmente uma nhaca jurídica, o que temos é só a dimensão do privado disfarçada, caso do Brasil. A questão é: será a esfera pública possível? Se as relações são desde sempre permeadas pelo poder, se o que temos hoje em dia são, antes de democracias, plutocracias, é possível construir esse espaço de debate livre e persuasão racional?
Talvez a questão não seja como construir a esfera pública, construindo um consenso que permita redimensionar a questão do poder. Talvez a questão seja como implodir o poder, vivendo na mais redimida felicidade humana.