Mox in the Sky with Diamonds

quarta-feira, agosto 05, 2009


O NEOLIBERALISMO E A CRENÇA NO ESTADO

SEMPRE ME INCOMODEI com o termo "neoliberalismo". Primeiro, porque tenho horror a chavões. Apesar disso, alguns chavões são verdadeiros (por exemplo, só pobre e preto vai para a cadeia). É que esse chavão me parecia com baixo poder reflexivo e estilo slogan, bloqueando o pensamento a respeito. Segundo, porque chamar a combinação de teologia do mercado com conservadorismo social típica dos anos 80 e 90 com as idéias defendidas por gente como Dewey, Rawls, Rorty e Dworkin me pareceu ofensivo e injusto. Já visitei o tema por aqui diversas vezes. E, no entanto, volto a ele.
Acontece que o termo neoliberalismo é, na verdade, usado por grupos de esquerda com nostalgia do Estado. Os pensadores que utilizam a expressão -- geralmente acompanhada da "globalização" -- são entusiastas da idéia de que quanto mais atividade vier do Estado, melhor. Um Estado grande e forte, como o Estado de Bem-Estar europeu, representaria o progresso humano e a chance de emancipação dos mais pobres, sobretudo a partir de uma instituição gradual de mais e mais direitos. O "neoliberalismo" teria cortado o fluxo de reconhecimento que aumentava desde o pós-Guerra e instituído o retorno da barbárie, do cada-um-por-si, proporcionando mais desemprego, pobreza e violência, tudo em busca do lucro individual.
Eu não nego que essa descrição seja verdadeira. No entanto, penso que é demasiado simplista. E esse simplismo aparece quando surge a dificuldade de analisar os movimentos de 68 e suas conseqüências.
Me parece que o grande erro da esquerda -- tanto a comunista quanto a social-democrata -- é a crença na neutralidade do Estado. Para os comunistas, o Estado pode ser apropriado pelo proletariado e, mediante um governo de ditadura, dar-se-iam as condições necessárias para a implementação do comunismo, com a ausência de Estado. Para os social-democratas, a justiça social passa pelo Estado a partir de arranjos jurídicos que fortalecem direitos de cidadania e provocam a emancipação geral. Ambos, portanto, concebem a estrutura do Estado como algo que, em si mesmo, não tem problemas. É verdade que os comunistas postulam, ao fim, sua abolição, mas a etapa intermediária (do "socialismo") pressupõe uma concentração absoluta. Bastaria que as pessoas certas se apropriassem do poder para que então se pudesse construir a felicidade humana. O recuo do Estado a partir dos anos 80, portanto, representaria uma regressão.
O equívoco para mim é muito claro: a idéia de que o público é o mesmo que o estatal. Toda crítica que inspirou os movimentos de 68 é mais radical do que o marxismo ortodoxo e a social-democracia. Autores como Foucault, Deleuze e Marcuse representam, em outros termos, uma crítica mais devastadora das estruturas sociais que pressupõe a idéia de que a apropriação do Estado, por si só, é insuficiente para dar conta dos complexos problemas que se apresentam a nós. A Escola de Frankfurt, aliás, já tinha indicado esse caminho. Esses autores -- de inspiração anarquista -- haviam demonstrado que as estruturas estatais, em si mesmas, são perniciosas, e que era preciso pensar emancipação fora do Estado. Hoje, com a genealogia arrasadora que Giorgio Agamben vem traçando do Poder Soberano, é quase impossível não concordar com isso. É preciso pensar o público fora do Estado. Autores como Nancy ou mesmo Agamben têm insistido na dimensão do comum para reavivar a dimensão utópico-messiânica sem cair no risco do totalitarismo (a grande armadilha que caiu a esquerda, diz Agamben bem no início do "Homo Sacer", foi ter subestimado o papel do Estado, relegando-o ao status de "superestrutura").
Tudo isso é visível na recente decisão de Hugo Chavez de não renovar concessões de televisões golpistas. Chavez -- que representa tudo que há de mais anacrônico em termos de discurso de esquerda -- embriagou-se no discurso do neoliberalismo e da globalização. Como os nostálgicos, ele vê os anos 80/90 como o avanço de uma desregulação geral que provocou desemprego, fome e miséria. E, como grande parte da esquerda, acredita que a solução é voltar a apostar em um Estado forte, governado pelas pessoas certas, para implementar estratégias de emancipação social na paupérrima América Latina. Qual é o problema? O problema é justamente que não é possível que uma posição realmente de esquerda seja contra a liberdade de informação, seja de que caráter for a informação. Uma pessoa de esquerda deve defender o direito de dizer o que for, deixando aos conservadores a tarefa da censura. Não é justificável - sob qualquer argumento - que alguém que pensa a emancipação humana seja contrário à emissão de um discurso, seja qual for o discurso.
O erro de Chavez é acreditar que o centralizado, o estatal, representa o público, e por isso e melhor que o privado. Nessas situações-limite é que fica muito difícil manter a coerência em defender uma medida que politicamente é insustentável. É insustentável porque vem de um erro conceitual. Se a esquerda marxista ortodoxa não fosse ideológica, se tivesse lido Foucault ou Adorno, saberia que a solução não passa pelo Estado ou por uma cartilha estratégica casual inventada no século XIX. Com isso, mantém uma posição indefensável por qualquer pessoa que não carregue ainda o germe fascista (ou restos dele) dentro de si.
Em contraponto à medida de Chavez, existe a Internet como um bloco de informações sem centro, sem controle e, por isso, altamente emancipatória. O choque que a Internet pode causar pode vir a ser ainda muito mais letal: ela está colocando em jogo o regime de propriedade ao permitir a circulação de arquivos. A Internet é a própria experiência do comum. Seu choque é muito mais radical do que televisões estatais. A incontrolabilidade da informação e a emergência da dádiva podem começar a fazer ruir o sistema virtual que encobre as relações reais de violência que se dão no nosso mundo.
Uma esquerda que se queira radical deveria -- antes de centralizar, verticalizar e manipular o poder -- elaborar mais e mais estratégias na direção do seu desaparecimento.

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