O LIBERALISMO/GARANTISMO É MELHOR QUE NADA, MAS É POUCO
ALGUNS PODEM CONFUNDIR -- e de fato por vezes admito que não faço qualquer questão de desfazer a confusão -- a posição dos que criticam o liberalismo, a democracia representativa e o garantismo, considerando que para eles não há qualquer diferença entre democracia e totalitarismo. Por vezes, confesso que me divirto borrando essa fronteira. Mas são a mesma coisa?
Ora, nem mesmo aquele que talvez tenha traçado a mais radical genealogia do poder soberano - Giorgio Agamben - diz que são a mesma coisa. Em uma breve passagem de Homo Sacer, justamente o livro em que traça uma linha de continuidade entre democracia e totalitarismo, Agamben reconhece que não são ambos a mesma coisa (quem tem dúvida, confira as páginas 17 e 18 do livro). E, apesar disso, continua sustentando -- sinalando a necessidade de firmeza nesse aspecto -- que a matriz de ambos os fenômenos é a mesma, e é justamente isso que encaminha os Estados contemporâneos para a ruína. Nem mesmo Benjamin -- no final das contas, a inspiração principal de Agamben -- afirmou isso. O que Benjamin afirmou - e a realidade não cansa de comprovar -- é que, para os oprimidos, o estado de exceção é a regra. Intervenções policiais nos morros cariocas não cansam de comprovar, infelizmente pelo menos uma vez por semana, que a vida nua é morta sem que sequer ganhe uma nota de jornal.
E o liberalismo? Ora, evidente que o liberalismo é melhor que um autoritarismo direto, que um fascismo qualquer. Porém sua capa estritamente formal não é capaz de dar conta do problema da vida nua, do resto. Como o liberalismo se resume a uma proteção jurídica do cidadão, ele não é capaz de enfrentar os problemas reais que atuam nas frestas dessas regulações. Ou simplesmente ignoram-nas. Se o habeas corpus pode ser uma arma poderosa para algum grande empresário preso arbitrariamente, é certo que o pequeno traficante do morro está totalmente exposto ao poder diante de uma intervenção armada do BOPE. Essa diferença não é um pequeno detalhe a ser corrigido gradualmente: é a persistência inabalável, doentia e violenta da mesma lógica que reduz alguns a nada (lógica que em Auschwitz encontrou sua consumação máxima). Enquanto os juristas elaboram suas teorias igualitárias nas quais a isonomia é um processo já dado, a vida nua não cansa de atestar -- na sua realidade brutal e incontestável - que tudo isso é uma bela alucinação da realidade.
É a vida nua em todas as suas dimensões que sofre e exerce a violência mais intensa na nossa sociedade. Capturada fora pelo controle -- ou seja, incluída na sua exclusão, a-bandonada -- essa vida nua tem consciência do pouco valor que tem sua vida e, por isso, age como se tudo no mundo fosse descartável. Mata por um tênis. Tortura por dez reais. E, no lance seguinte, é eliminada como pó. Vida descartável que povoa nossas cidades; o "estranho" que canaliza justamente todo medo social. Atua como se fosse um trauma para a psicanálise: na incapacidade de suportarmos sua intensidade, o reprimimos/recalcamos e ele retorna ainda mais intenso. Repete-se doentiamente, irrigado de pulsão de morte. É bem possível que a psicanálise seja devedora de uma concepção de sujeito hoje insustentável; seu mérito, no entanto, é antes ter desvelado a inutilidade da repressão do "sombrio" em nós mesmos, abrindo a possibilidade de pensarmos nas nossas projeções e no retorno daquilo que foi varrido para baixo do tapete.
Para essa vida nua, para essa violência incontrolável que vivemos e não tem data de finalizar (o suposto "Primeiro Mundo", apesar de ter reduzido significamente seus níveis, ainda tem que viver com seus traumas em forma de terrorismos), o liberalismo não tem resposta. Na sua capa de proteção formal não cabe analisar a realidade das relações sociais, mas sim reduzi-la a jogos jurídicos em que que tudo se resume a uma questão de acesso à justiça ou à esfera pública. O pretexto da "sociedade aberta" -- argumento poderoso e inteligente, reconheço -- não é suficiente para justificar a espessura formal da democracia; é um pensamento sem temporalidade, sem história, saído da mente de algum pensador de gabinete insensível com a morte que bate à sua porta. Uma "sociedade aberta" tolera o puro e simples assassinato, ainda que justificado sob os eufemismos da "miséria" ou "injustiça social"? Ou se trata apenas de um discurso de fachada que encobre o fato de poder -- esse sim concreto e real -- ao formulá-lo em esquemas abstratos e metafísicos?
Quando não fazemos questão de dizer que o garantismo - ou o liberalismo - é melhor que o totalitarismo é para realçar aquilo que esses discursos são na realidade: farsas. Seus pretextos, suas escusas e suas alucinações encobrem aquilo que é visível a olho nu: vivemos em um mundo extremamente violento em que alguns são reduzidos a nada, vida matável. E eles não são exceção. São milhões e milhões que se empilham ao redor do mundo. Para eles, o liberalismo só promete a espera.
Quando não fazemos questão de dizer que o garantismo - ou o liberalismo -- é melhor que totalitarismo, repito, é porque por vezes os liberais/garantistas fazem o mesmo discurso que por vezes criticam: o do "fim da história". Sua discordância é só com os o "neoliberalismo", mas estão de acordo com o fim das "utopias". O pensamento fica estacionado no mesmo ponto, apenas se discorda qual é o ponto. É preciso mais ousadia. Precisamos pensar além do "niilismo pós-moderno". Não para reafirmar aquilo que ruiu por conta própria (sou dos acham que a Shoah era destino, e não acidente, da Modernidade), mas para pensar além -- jamais interromper a possibilidade que o pensamento tem de alcançar pontos outros em relação ao que vivemos. O conservadorismo é o ethos desses anos 90/2000, ainda que por vezes um conservadorismo que glorifica o próprio vazio, sacralizando aquilo que poderia ser a nossa maior chance profanatória. É preciso ir adiante. O liberalismo é pouco para nós.