CONTRA O CINISMOESSE PROVAVELMENTE SERÁ meu último post antes de uma agradável viagem à Santa Catarina, onde cuidarei em permanecer desconectado e preocupado com assuntos mais leves.
Uma das coisas que mais me preocupa na política é a apologia ao cinismo. Recentemente, Vladimir Safatle (em texto acadêmico) e Marcelo Coelho (no artigo "Doutores em Pessimismo", publicado na FSP) exploraram bem a relação entre o pessimismo e o catastrofismo, de um lado, e uma postura cínica, indiferente, de outro. Pretendi resumir tudo no meu axioma do direitista conservador: "meus ideais não são melhores, meu objetivo é provar que não fazes o que pregas, é provar que também és um canalha". Em síntese: o conservador reconhece que o mundo, como está, é algo terrível; porém acredita que as coisas são mesmo assim e que, por isso, todo aquele que propõe algo diverso está ou mentindo ou é "ingênuo". Isso resulta no cinismo irônico que, hoje, é a principal estratégia retórica dos mais célebres conservadores. Não canso de escrever contra o cinismo. E hoje vou usar dois argumentos para tentar mostrar que o mundo real não é sujo e terrível como os pessimistas pensam, e muito menos que o que é catastrófico (de fato) seja inevitável. O primeiro é a questão da violência. Pesquiso sobre o tema há um punhado de anos. Quanto mais pesquiso, mais concluo que a violência gera cada vez mais violência. Reprimir violentamente o crime deixa o crime mais violento. Partir para uma política de guerra contra um inimigo deixa o inimigo com igual apetite para a guerra. Quanto mais violência, mais difícil a reconciliação posterior e mais provável que será preciso usar mais violência. Derrida certa vez chamou isso de "processos auto-imunitários", nos quais um organismo se imuniza contra seus próprios anticorpus. Dito de outra forma, é quase uma estratégia suicida. É só ver a lógica da violência: quanto mais os policiais entram e praticam extermínio na favela, mais os traficantes se armam para se defender de uma execução sumária, e isso leva a uma policiamento mais violento e mais armas aos traficantes; quanto mais Bush apertou os cintos na política de guerra e confronto, mais o terrorismo se fortalece, mais antipatia gera e com mais convicção a polarização se constrói; quanto mais Israel ataca os palestinos, mais os grupos terroristas ficam fortes, bebendo do ódio e ressentimento, e maior a violência da reação, que, por sua vez, produz ataques mais fortes e assim por diante. A violência se alimenta de si mesma. Isso significa que a guerra é sempre a pior opção, ao contrário do que a extrema direita e os militares pensam. É uma estratégia que só tem dois fins: ou extermina da face da Terra inimigos e descendentes, matando indiscriminadamente, ou cria problemas maiores do que os existentes. O exemplo do IRA - hoje problema resolvido - mostra como a lógica de guerra é bem menos eficaz que a negociação política. Isso deveria ser uma pedra no sapato de todo conservador que defende sempre e sempre a guerra e a destruição do inimigo. A guerra gera mais problemas que soluções. Quem alimenta o raciocínio bélico está colaborando para a infelicidade de todos, para a prorrogação do sofrimento. A guerra é o último dos últimos recursos, deve ser precedida sempre de negociação. E essa negociação não deveria ter limites. Nem mesmo certos adjetivos poderosos como "terrorista". Os "realistas", no entanto, adoram uma guerrinha.
O inverso também é verdadeiro. A paz traz a paz. Paz com justiça, claro, não puro silenciamento autoritário por exigências de "ordem". Paz com esperança. Prova disso são os lugares em que há uma organização social com justiça. Por exemplo, Suécia ou Noruega. Ninguém é bobo de sustentar o determinismo pobreza = crime, já que a maioria dos pobres não comete usualmente crimes e os ricos cometem também em grande intensidade. Aliás, ninguém é bobo de sustentar qualquer determinismo. No entanto, é forçoso reconhecer que sociedades com justiça social conseguem diminuir significativamente a violência urbana. Basta comparar Brasil, com sua estúpida taxa de homicídios e injustiça monumental, e Suécia.
O cidadão sueco está mais acostumado a resolver os conflitos sem violência. Pode-se aqui até enxergar o componente do "processo civilizatório", de Elias, com o refinamento dos costumes e a ojeriza à violência privada. A paz com justiça gera a paz social. Não é a violência estatal que mantém em equilíbrio a sociedade sueca, mas uma relativa estabilidade em termos de paz e justiça. Isso diminui a violência social. Ou seja, ao contrário do que pregam os "realistas", é a paz com justiça, e não a ameaça da violência, que diminui, interrompe a violência.
O segundo argumento é a primazia da paz sobre a guerra. Ou da palavra sobre a violência. Os conservadores usam muito facilmente a premissa hobbesiana de que, inexistindo a violência punitiva (ou da guerra), seria guerra de todos contra todos. Isso me parece simplesmente falso. Se o "natural" do homem não fosse o equilíbrio da palavra, não conseguiríamos nos comunicar. Para cada relação corrompida que constatamos (e são cada vez mais) há centenas de sadias. Esse equlíbrio da relação ética é a regra, e não a exceção. A canalhice pode até um dia virar regra, mas ainda não é. E, se for, é porque foi precedida pela relação sadia, foi a partir desta que ela se construiu.
O homem é frágil e, por isso, não raro tropeça. Os conservadores se apegam no tropeço. Precisamos mostrar a diferença entre um tropeço e um modo de vida. Uma coisa é um desvio ético, outra é a vida transformada em desvio. Nem todo mundo consegue ser São Francisco de Assis. É compreensível. Porém, de outro lado, conseguimos distinguir Obama de Hitler, ainda que Obama porventura venha a tropeçar. O objetivo do conservador é apanhar aquele tropeço para, a partir dele, deslegitimar todo projeto de mudança e afiançar um mundo repleto de corrupção e cinismo. O desventura dele é que, a cada dia que passa, nasce mais esperança na mudança.
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