SOBRE O DIREITO ALTERNATIVO
O "Movimento do Direito Alternativo", hoje infelizmente abandonado (discursivamente) pelos grandes juízes que o defendiam, é a plena consciência da vigência do estado de exceção na realidade. Sua angústia não é sistemática; é ética. A falta de um arcabouço teórico mais forte, admitida pelos seus integrantes, não impedia a primazia da dimensão da justiça esquecida pelo direito. As constantes fraturas no discurso sistemático de Direito ao longo da sua história (falo por exemplo da "Escola do Direito Livre") revelam constante e crescente mal-estar diante da violência da estrutura jurídico-teológica que mantém a ordem e destrói a pretensão de justiça e salvação.
Admirei durante um bom tempo os outsiders "alternativos" durante a faculdade. Depois, com as leituras de Direito Constitucional, comecei a contestá-los e defender o discurso dos direitos fundamentais como supridor da lacuna da justiça. A Constituição seria o elemento capaz de substituir o "arbítrio" da "justiça" e, sem romper o elemento sistemático inerente ao Direito, trazer o progresso capaz de enfrentar a injustiça cotidiana e pôr-se acima das disputas políticas e até do senso comum. O discurso jurídico-constitucional seria capaz de neutralizar o elemento político que provoca tensão e discórdia e atravessá-lo, colocando-se acima da disputa.
O que caracteriza os "alternativos" é a ciência da plena fratura que se estabelece entre "lei" e "força de lei", a partir da qual se estabelece o estado de exceção. Somente mais tarde fui capaz de perceber a grandeza dessa consciência. Foi ao estudar outros autores que comecei a perceber que a realidade nua e crua está em completo descompasso com o discurso constitucional e que esse nada constitui. A "Constitui-ção" não é mais que um mito encobridor das relações reais de poder que estruturam a realidade social. Lassalle, e não Hesse, tinha razão. No chão da prática, há uma plena indiferença às regras jurídicas, sendo que os fatores de poder são o que realmente decide. O elemento sistemático inexiste.
Os constitucionalistas e liberais em geral insistem em tratar esse vazio como "erro". Não percebem, como a filosofia sabe pelo menos desde Hegel (minha torturante leitura de férias) e Heidegger que o erro existe. Assim, para o último, por exemplo, a história do "esquecimento do ser" não é apenas algo como um "erro", mas de um esquecimento enquanto manifestação desse ser. Não é à-toa que o Direito -- em pelo menos 80% da sua produção -- não ultrapassou a perspectiva kantiana e vive ainda da epistemologia positivista que pensa dogmaticamente a partir do elemento sistemático, adotando a lei como objeto científico sem qualquer preocupação com a faticidade (eis o corte "normativo" de Kelsen que hoje ilumina todas as "dogmáticas" jurídicas).
Os "alternativos" rebatem isso com uma consciência da distância entre "força de lei" e "lei". Sua prática não dizia respeito a um elemento sistemático ou contra-sistemático que se contrapunha ao positivista. O que os caracteriza era a urgência da justiça. Diante da violência que se apresenta com contornos jurídico-teológicos, abrindo o intervalo para o estado de exceção, eles rebatiam com o estado de exceção tornado real, tal como Benjamin propunha nas 'Teses sobre a História'. E isso significa voltar-se especialmente para o concreto, fazer aparecer a alteridade sufocada pela Totalidade a que o Direito se submete. Nenhum outro elemento senão essa indignação ética caracteriza seu trabalho. Todo resto era ad hoc.
Quem os leu (e isso é raro, creiam-me) sabe que, por exemplo, os alternativos não se posicionam a priori contra a lei. Amilton Bueno de Carvalho certa vez inclusive propôs um "positivismo de combate" que consistia na utilização radical das legislações emancipatórias que são deixadas em segundo plano pelo Poder Judiciário. Porque ele sabia que o elemento da "decisão" é o estado de exceção e é ele que explica, por exemplo, decisões absolutamente ilegais (ou inconstitucionais) do STF como a que negou vigência ao art. 192, § 3º, que determinava juros de 12% ao ano, ou a negativa de vigência ao mandado de injunção (pelo medo do excesso de trabalho (!), entre outras razões). E, no entanto, essas decisões não causam qualquer escândalo nos meios jurídicos, apesar de totalmente contrárias à lei. O porquê de um escandalizar e outro não é algo que nada tem a ver com o texto da lei. Os alternativos sabiam que o que está em disputa é uma situação bem concreta que diz respeito à justiça do caso, pois a justiça só pode se dar no caso, como interrupção da injustiça que é a regra. E isso só se faz com estado de exceção tornado realidade. Sua preocupação não era em construir um sistema axiomático, mas dar vazão à urgência da justiça aos restos da história.
É essa a crítica que faço aos garantistas, especialmente Ferrajoli. Ao neutralizar a exigência concreta de justiça em um sistema axiomático, formaliza essas exigências e, com isso, abre a possibilidade não apenas dessa formalização permanecer distante da realidade, mas inclusive de servir a propósitos distintos dessa exigência concreta a partir das constantes frestas abertas pelo estado de exceção enquanto vazio entre "lei" e "força de lei". Ao formalizar, o garantismo repõe o sagrado e não destrói a estrutura que se perpetua nos tempos. Pensar a profanação do Direito é pensar em um novo uso, talvez bem próximo do "uso alternativo". Por isso, acredito ser urgente retomarmos a idéia de um "Direito Alternativo" ou "contra-direito" em nome da interrupção da injustiça, que é a justiça.
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