EXISTE BOM JORNALISMO
Já que ando falando tanto de mídia, vale a pena reproduzir aqui a coluna do Helio Schwartsman, um dos melhores jornalistas do Brasil. Ele é prova que dá para fazer jornalismo sem ser Paulo Henrique Amorim ou Diogo Mainardi.
Fonte:
A CRÍTICA DA CRÍTICA
Hoje vou meter o bedelho na polêmica dos livros didáticos. Para os que não acompanharam a história desde o início, traço um breve resumo. Na semana passada, o jornalista Ali Kamel, publicou em "O Globo" artigo no qual desanca o livro "Nova História Crítica" --"NHC" para os íntimos--, que foi distribuído gratuitamente pelo MEC (Ministério da Educação) a 750 mil alunos da 8ª série da rede pública. Sob o título "O que ensinam às nossas crianças", Kamel apontou, entre outros problemas de "NHC", o fato de o autor da obra enaltecer os ideais marxistas e elogiar Mao Tse-tung e a Revolução Cultural. O texto de Kamel deflagrou nas grande imprensa uma série de matérias e editoriais. Alguns veículos assumiram uma posição bastante crítica em relação ao MEC. A reação não se fez esperar. Representantes de grupos de esquerda viram nessa reação mais uma manifestação da "mídia golpista".
Vamos agora tentar destrinchar as várias camadas ideológicas desse notável "imbroglio". "NHC" é historiograficamente indefensável. Tive oportunidade de folhear rapidamente o título. Nem tudo ali é delírio ou manipulação ideológica, mas os trechos apontados por Kamel já bastam para desqualificar a obra. Afirmar que, no socialismo, "as decisões econômicas são tomadas democraticamente pelo povo trabalhador, visando ao bem-estar social" contraria as evidências históricas disponíveis. Mais grave ainda é falar da Revolução Cultural sem mencionar que ela produziu, por baixo, meio milhão de mortos. Há autores que mencionam cifras entre 750 mil e 1,5 milhão. E não dá para imaginar que um historiador profissional tenha se esquecido desse "detalhe", donde a suspeita de desonestidade intelectual.
Só que, ao contrário de Kamel, não fico com medo de "NHC" nem creio que a utilização da obra deixará marcas indeléveis na formação das crianças. Elas vão, é claro, ressentir-se, mas da péssima qualidade do ensino oferecido pela rede oficial e não deste ou daquele livro em particular. Não serão umas poucas passagens criminosamente pró-PC do B que comprometerão o seu futuro. Jovens são relativamente resistentes. A maioria sobrevive a anos e anos de doutrinação religiosa sem por isso converter-se em sacerdotes. O buraco do ensino público é, infelizmente, muito mais embaixo.
Não há dúvida de que "NHC" deve, por suas falhas, ser excluído da lista de livros recomendados e comprados pelo MEC --como, aliás, já o foi para o período de 2008 a 2010. Só que, antes de soltar os cachorros contra o ministério, liberais autênticos podem encontrar nessa novela motivos para júbilo. A inclusão do livro na lista do MEC é o preço que pagamos por viver numa sociedade aberta. Sua posterior exclusão por erros técnicos é a prova de que o sistema está funcionando e é capaz de corrigir suas falhas.
A metodologia pela qual o ministério avalia e adquire material didático está longe de perfeita. Tem, entretanto, a grande virtude de promover a variedade de títulos e abordagens, afastando o perigo de dirigismo estatal. Não costumo chancelar teorias conspiratórias, mas considero mais palpável o risco de burocratas acabarem criando uma história e uma ciência oficiais do que o de obras como "NHC" produzirem milhões de eleitores de Aldo Rebelo.
No mais, vale observar que o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) acabou sem nenhuma provocação externa excluindo "NHC" da lista de títulos recomendados. E é justamente assim que o sistema deve funcionar. Se uma obra inepta inadvertidamente escapa à primeira avaliação --em 2002 e 2005 o título havia sido aprovado "com ressalvas", por "resvalar no maniqueísmo"-- pode e deve ser condenada em juízos posteriores, como de fato aconteceu.
É claro que, no período em que foi distribuído, "NHC" provocou prejuízos intelectuais e materiais. Crianças, afinal, estudaram história numa obra ruim e o Estado pagou R$ 12 milhões por um produto de má qualidade. Imagino até que a editora e o autor estejam infelizes, pois incorreram em "lucro", conceito que condenam como manifestação "burguesa" quando analisam o capitalismo.
Desde 1996, os livros do PNLD são submetidos a uma avaliação trienal. As obras aprovadas por comissões autônomas ligadas a universidades são incluídas no "Guia do Livro Didático" --não confundir com "Guia Genial dos Povos"-- acompanhadas de resenhas críticas. A partir desse catálogo professores escolhem com quais obras irão trabalhar, e o MEC as adquire. O fato de "NHC" ter sido o livro campeão de indicações por mestres traça um panorama preocupante acerca do nível intelectual dos professores de história. Mas a vulnerabilidade do PNLD é hoje mais econômica do que ideológica, pois as comissões acabaram tornando-se alvo de poderosos lobbies de editoras que fazem de tudo e mais um pouco para ter seus títulos aprovados, garantindo assim pelo menos três anos de fartura em vendas.
Acho que Kamel e a imprensa em geral fizeram bem em revelar e destacar a história, que ganhou reportagens até em jornais estrangeiros. Avançaram um pouco o sinal ao cobrar do MEC uma atitude que já havia sido tomada (a exclusão da obra) e que não lhe competia, dado que a avaliação é feita por quadros externos aos do ministério. Já a tentativa feita por alguns órgãos de ligar a aquisição de "NHC" ao passado esquerdista do ministro Fernando Haddad beira o patético, coisa de quem não entendeu como funciona o sistema ou não sabe olhar datas. Afinal, a inclusão original do título se deu sob a gestão do ministro Paulo Renato Souza, na era FHC. Sob Haddad e Lula ocorreu o veto à obra.
Quanto aos que viram nessa história toda mais uma manifestação de golpismo da mídia, receio que este seja um caso perdido. É a prova empírica de que certas ideologias são imunes a fatos. Por mais que possamos criticar um ou outro aspecto da cobertura, é inegável que, numa democracia pluralista, cabe à imprensa identificar e criticar casos como o de "NHC". Só discorda disso quem acha que jornais servem para enaltecer governos e "lideranças populares".
Vamos agora tentar destrinchar as várias camadas ideológicas desse notável "imbroglio". "NHC" é historiograficamente indefensável. Tive oportunidade de folhear rapidamente o título. Nem tudo ali é delírio ou manipulação ideológica, mas os trechos apontados por Kamel já bastam para desqualificar a obra. Afirmar que, no socialismo, "as decisões econômicas são tomadas democraticamente pelo povo trabalhador, visando ao bem-estar social" contraria as evidências históricas disponíveis. Mais grave ainda é falar da Revolução Cultural sem mencionar que ela produziu, por baixo, meio milhão de mortos. Há autores que mencionam cifras entre 750 mil e 1,5 milhão. E não dá para imaginar que um historiador profissional tenha se esquecido desse "detalhe", donde a suspeita de desonestidade intelectual.
Só que, ao contrário de Kamel, não fico com medo de "NHC" nem creio que a utilização da obra deixará marcas indeléveis na formação das crianças. Elas vão, é claro, ressentir-se, mas da péssima qualidade do ensino oferecido pela rede oficial e não deste ou daquele livro em particular. Não serão umas poucas passagens criminosamente pró-PC do B que comprometerão o seu futuro. Jovens são relativamente resistentes. A maioria sobrevive a anos e anos de doutrinação religiosa sem por isso converter-se em sacerdotes. O buraco do ensino público é, infelizmente, muito mais embaixo.
Não há dúvida de que "NHC" deve, por suas falhas, ser excluído da lista de livros recomendados e comprados pelo MEC --como, aliás, já o foi para o período de 2008 a 2010. Só que, antes de soltar os cachorros contra o ministério, liberais autênticos podem encontrar nessa novela motivos para júbilo. A inclusão do livro na lista do MEC é o preço que pagamos por viver numa sociedade aberta. Sua posterior exclusão por erros técnicos é a prova de que o sistema está funcionando e é capaz de corrigir suas falhas.
A metodologia pela qual o ministério avalia e adquire material didático está longe de perfeita. Tem, entretanto, a grande virtude de promover a variedade de títulos e abordagens, afastando o perigo de dirigismo estatal. Não costumo chancelar teorias conspiratórias, mas considero mais palpável o risco de burocratas acabarem criando uma história e uma ciência oficiais do que o de obras como "NHC" produzirem milhões de eleitores de Aldo Rebelo.
No mais, vale observar que o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) acabou sem nenhuma provocação externa excluindo "NHC" da lista de títulos recomendados. E é justamente assim que o sistema deve funcionar. Se uma obra inepta inadvertidamente escapa à primeira avaliação --em 2002 e 2005 o título havia sido aprovado "com ressalvas", por "resvalar no maniqueísmo"-- pode e deve ser condenada em juízos posteriores, como de fato aconteceu.
É claro que, no período em que foi distribuído, "NHC" provocou prejuízos intelectuais e materiais. Crianças, afinal, estudaram história numa obra ruim e o Estado pagou R$ 12 milhões por um produto de má qualidade. Imagino até que a editora e o autor estejam infelizes, pois incorreram em "lucro", conceito que condenam como manifestação "burguesa" quando analisam o capitalismo.
Desde 1996, os livros do PNLD são submetidos a uma avaliação trienal. As obras aprovadas por comissões autônomas ligadas a universidades são incluídas no "Guia do Livro Didático" --não confundir com "Guia Genial dos Povos"-- acompanhadas de resenhas críticas. A partir desse catálogo professores escolhem com quais obras irão trabalhar, e o MEC as adquire. O fato de "NHC" ter sido o livro campeão de indicações por mestres traça um panorama preocupante acerca do nível intelectual dos professores de história. Mas a vulnerabilidade do PNLD é hoje mais econômica do que ideológica, pois as comissões acabaram tornando-se alvo de poderosos lobbies de editoras que fazem de tudo e mais um pouco para ter seus títulos aprovados, garantindo assim pelo menos três anos de fartura em vendas.
Acho que Kamel e a imprensa em geral fizeram bem em revelar e destacar a história, que ganhou reportagens até em jornais estrangeiros. Avançaram um pouco o sinal ao cobrar do MEC uma atitude que já havia sido tomada (a exclusão da obra) e que não lhe competia, dado que a avaliação é feita por quadros externos aos do ministério. Já a tentativa feita por alguns órgãos de ligar a aquisição de "NHC" ao passado esquerdista do ministro Fernando Haddad beira o patético, coisa de quem não entendeu como funciona o sistema ou não sabe olhar datas. Afinal, a inclusão original do título se deu sob a gestão do ministro Paulo Renato Souza, na era FHC. Sob Haddad e Lula ocorreu o veto à obra.
Quanto aos que viram nessa história toda mais uma manifestação de golpismo da mídia, receio que este seja um caso perdido. É a prova empírica de que certas ideologias são imunes a fatos. Por mais que possamos criticar um ou outro aspecto da cobertura, é inegável que, numa democracia pluralista, cabe à imprensa identificar e criticar casos como o de "NHC". Só discorda disso quem acha que jornais servem para enaltecer governos e "lideranças populares".