AS CRÍTICAS A LÉVI-STRAUSS
A MORTE de Lévi-Strauss gerou uma pilha de obituários. Alguns, previsivelmente, em caráter crítico. Vou tentar responder a alguns deles (dois da Folha, p.ex., de Luiz Felipe Pondé e Pereira Coutinho, dois representantes - o primeiro um pouco ambivalente - da direita pensante).
Os críticos do etnólogo francês reconhecem a importância do seu trabalho, mas afirmam que, com o estruturalismo, Lévi-Strauss nivelou todas as culturas, impedindo o seu julgamento e legitimando suas estruturas. Ademais, deixou sem referencial o Ocidente, impedindo a primazia do discurso iluminista.
Ambas críticas estão erradas. Primeiro, Lévi-Strauss era um etnólogo, e não um filósofo moral. Portanto, sua tarefa não é julgar as culturas, mas compreendê-las. Afirmar que toda cultura é uma totalidade fechada e carece de irracionalidade não significa, ao mesmo tempo, nivelar as culturas, ao menos não no sentido fortemente valorativo que as críticas afirmam. É impressionante -- e isso ocorre também MUITO frequentemente na Criminologia - como certas pessoas têm dificuldade de dissociar o nível descritivo do valorativo. É verdade que toda descrição é não-neutra, mas isso não significa, ao mesmo tempo, a impossibilidade de descrever. O fato de a objetividade ter sido relativizada pela filosofia do século XX não significa, automaticamente, que não exista objetividade. Isso é simplesmente falso. Aqueles que não conseguem distinguir ser a objetividade um "setor" da experiência do mundo de não existir ou não entenderam nada, ou estão de má-fé.
Lévi-Strauss era, como eu disse, um etnólogo, preocupado com a cientificidade das suas descrições. Não cabia a ele, portanto, afirmar que todas as culturas são iguais, ou que dá tudo na mesma. Isso é uma conclusão nossa do seu trabalho. O que ele "nivelou" não foram os critérios morais das diversas culturas, mas a sua racionalidade -- Lévi-Strauss simplesmente apresentou as formas a partir das quais a experiência no mundo se organiza, demonstrando que os "primitivos" não são comparáveis a loucos ou crianças (se quiséssemos ampliar, diríamos que nem loucos ou crianças pensam de forma "irracional"). O que me leva ao segundo ponto.
A prosa antropológica de Lévi-Strauss não é, como afirmam alguns entusiastas do liberalismo político, "anti-ocidental" ou "anti-iluminista". Lévi-Strauss é anti-etnocêntrico, ou seja, alguém que tem a preocupação não de desmerecer os valores ocidentais, mas de circunscrevê-los no tempo e espaço. Que a idéia de sujeito, a definição de razão, a crença do contrato social e a visão da liberdade do liberalismo político/iluminismo são fenômenos tipicamente ocidentais, poucos duvidam. A conclusão que se tira disso é que um discurso verdadeiramente universalista deveria se pautar por categorias negociadas entre as diversas culturas, sob pena de ser -- como é -- imperialismo ocidental (ainda que um bem-intencionado imperialismo). Nossa cultura não é isenta de críticas e nem é perfeita. Se é melhor que a Taleban, ótimo. Mas negociar algo universal com o Taleban significa ter que estabelecer um parâmetro mínimo de diálogo, que não necessariamente precisa coincidir com indivíduos, estado de natureza, contrato, liberdade, mercado.
Todos aqueles que pautam os valores ocidentais como universais são visivelmente etnocêntricos. E o etnocentrismo é uma forma de preconceito (e, por isso, de violência). O que Lévi-Strauss nos apresentou foi a diversidade de sistemas culturais, todos organizados e racionais em si mesmos, tornando imensamente complexa a possibilidade de negociação do universal. E é perfeitamente plausível que assim seja, haja vista a diversidade que perpassa o mundo (muito mais plausível que simplórias imagens ocidentais de indivíduos que se reúnem em contratos).
A discussão em torno do universal está longe ainda de algum resultado, e certamente Lévi-Strauss não atrapalhou, mas a complexificou devidamente. O iluminismo não é outra coisa senão uma forma sagrada de religião civil, quer dizer, uma espécie de secularização das formas sagradas que troca seus atores, mas mantém inalterada a posição das peças. Trata-se, portanto, de uma forma cultural (e não universal) que tem seus méritos (muitos) e deméritos (vários), como as demais. Não pode se impor com base na violência do etnocentrismo, conquanto muitas das culturas particulares que nos deparamos se apresentem como violentas.
O que queremos como universal? É uma discussão apenas iniciante, que autores como Levinas (ética, alteridade), Derrida (hospitalidade), Agamben (profanação), Benjamin (redenção) e tantos outros contribuíram e problematizaram ainda mais.
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