Mox in the Sky with Diamonds

terça-feira, novembro 03, 2009


CLAUDE LÉVI-STRAUSS (1908-2009)

Tinha a nítida impressão de já ter escrito um post por aqui sobre Lévi-Strauss. Depois de conferir até os rascunhos do blog, concluí que fiquei só na promessa. Diante da morte do genial antropólogo francês, resta homenageá-lo, ainda que de forma curta, pois meu tempo anda escasso (e isso não é retórica).
É conhecida a frase de Freud acerca das três feridas narcísicas: a primeira, por Galileu, tira a Terra do centro do Universo; a segunda, por Darwin, tira o homem do centro da Criação; a terceira, por Freud (a modéstia não estava entre suas características...), tira a homem da posse da sua "própria casa", ou seja, da sua consciência, revelando a existência do inconsciente. Lévi-Strauss seguramente poderia ocupar um espaço de quarta ferida narcísica, ao ferir de morte o narcisismo do homem ocidental (Freud incluso): mostrando que o pensamento científico não era superior aos demais e abrindo a possibilidade de uma interpretação formal das culturas a partir do estruturalismo, Lévi-Strauss derruba o mito do homem europeu no centro do mundo.
O que Lévi-Strauss, apoiado em Mauss, não cansou de mostrar foi que as culturas não podem ser hierarquizadas em "evoluídas" e "primitivas", ou "civilizadas" e "bárbaras", atribuindo às segundas o rótulo de irracionais, absurdas, infantis. Lévi-Strauss prova a partir do método estrutural que toda cultura - por mais rudimentar que pareça - é um sistema organizado de crenças, uma totalidade que estrutura o agir e interpretar o mundo por aqueles que a compartilham. Essa estrutura, nos diz o autor, ultrapassa os indivíduos que estão ali presentes, uma vez que não pressupõe qualquer intencionalidade destes ao transmitirem os arcabouços culturais tais como mitos, ritos e diferenças. Isso não significa pensar a cultura "fora" dos indivíduos, mas sim ultrapassar a noção cartesiana de "consciência" (e Freud, nos diz Lévi-Strauss, foi sua principal influência no aspecto) para abarcar uma espécie de "super-racionalismo", em que o próprio inconsciente é capturado nos seus movimentos a partir das estruturas sociais (que seriam "infraestruturas", daí a admiração igualmente por Marx e pela geologia).
O pensamento de Lévi-Strauss é, portanto, da forma, e não da substância. Ele não hierarquiza os sistemas de crenças a partir da proximidade com o pensamento científico, tal como os positivistas até hoje fazem. Lévi-Strauss, ao contrário, entende cada sistema como uma totalidade coerente em si mesma, que muitas vezes não apenas responde a problemas concretos do cotidiano, mas até produz "conhecimento desinteressado" (tal como longas classificações de plantas por índios que Lévi-Strauss arrola em "O Pensamento Selvagem"). Como antropólogo, a preocupação científica de Lévi-Strauss era nítida, e fazia questão de separar a "boa" (o estruturalismo) da "má" ciência (o funcionalismo). No entanto, isso não significava reprisar o preconceito etnocêntrico, mas abrir a possibilidade de pensar outras culturas como outros "mundos", sem necessariamente estabelecer hierarquias.
Quando leio que José Saramago escreve novo livro "herético" sobre religião, fico pensando o quanto lhe faria bem a leitura de Lévi-Strauss. A visão materialista-positivista não é falha por estar cientificamente errada, mas por não compreender que as grandes e pequenas religiões - cristianismo, judaísmo, islamismo, p.ex. - são sistemas de mundo organizados que traduzem determinados valores, não passando de birra adolescente a visão caricata de, p.ex, "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" (o mesmo se aplica a Dawkins, Hitchens, etc.).
Os contributos de Lévi-Strauss à ciência da antropologia são inestimáveis. O maior contributo, no entanto, é sempre o de fundo ético: Lévi-Strauss nos abriu a possibilidade de pensar o estranho sem, no mesmo passo, violentá-lo com as nossas crenças.

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