Mox in the Sky with Diamonds

terça-feira, maio 30, 2006

5 DISCOS PARA OUVIR EM DIAS DE CHUVA


5. Beth Gibbons & Rustin' Man - "Out of Season" (2002) - já falei aqui recentemente.

4. Laura Veirs, "Carbon Glacier" (2004) - excelente disco de, basicamente, folk. Melancolia oceânica, mas é arte. Deixei uma resenha no www.plugitin.com.br.

3. Mercury Rev, "Deserter's Songs" (1998) - de novo? De novo.

2. The Verve, "A Northern Soul" (1995) - um pouco de psicodelia não vai mal. Clima introspectivo e furioso. Ouça com chuva FORTE.
.
1. Portishead, "Dummy" (1994) - peraí...
.
.
E também: Massive Attack, Mezzanine (1998), John Frusciante, "To record only water for ten days" (2001), Radiohead, "Amnesiac" (2001); Grandaddy, "Sumday" (2003), Los Hermanos, "4" (2005), Nirvana, "Unplugged in New York" (1994); Chico Buarque, coletânea "O Amante"; Interpol, "Turn on the bright Lights" (2001), Pink Floyd, "Ummagumma" (1969) ou "Wish you are here" (1975).
.
Pra esquentar 2006:
.
5. Primal Scream, "Country Girl" - em duas palavras, ROLLING STONES;
.
4. Snow Patrol, "Chasing Cars" - a nova "Run" do Snow Patrol. Muito boa!
.
3. The Raconteurs, "Steady as she goes" - guitarras setentistas e riff grundendo. Na veia;
.
2. The Strokes, "Razorblade" - difícil escolher essa --- "You only live once", "Juicebox", "On the other side" e "Heart in a cage" são também igualmente fodas, mas essa é a minha favorita, pela genialidade da letra;
.
1. Secret Machines, "Alone, Jealous and Stoned" - quanto mais ouço, mais gosto.
.
.
Trilha sonora do post: Beth Gibbons & Rustin' Man, "Romance" (pq chove...).

quarta-feira, maio 24, 2006

Potência e Degerescência
.
.
SEGUINDO O EXEMPLO do blog vizinho, do ilustre niilista político G.D., sou obrigado a adotar, ao estilo do Grande Mestre (me nego a dizer Seu Nome, é desnecessário), pequenos pedaços de saber adquiridos durante a provação infernal a que venho sendo submetido, em pequenas formas (se ligou? "pills" sempre foram pequenos aforismos).
.
§ 1º
.
A falta é constitutiva. Logo, até a burrice é desculpável.
.
§ 2º
.
Procurar a essência de uma coisa é como descascar uma cebola atrás da sua "cebolidade". No final, fica apenas a tua mão, meu velho.
.
§ 3º
.
Temos um coro [e não é metafísico]. Um coro que funciona como dublagem instantânea, ressonância, eco ou crítica destrutiva. Tudo depende do contexto. E atrapalha; sim, atrapalha.
.
§ 4º
.
Não, Habermas depois da meia noite não é uma boa idéia. Não é mesmo.
.
§ 5º
.
Não, não é melhor ler Maffessoli plagiando Nietzsche do que ler Nietzsche. Não é mesmo. E, ah, extraia desse silogismo as devidas conseqüências.
.
§ 6º
.
Mulheres que tomam muitos medicamentos psiquiátricos podem ficar tão felizes, tão felizes, que viram abostardas.
.
§ 7º
.
O pior do burro é que ele não percebe.
.
§ 8º
.
Para as gostosas nós abrimos exceção. Em tudo. Inclusive acidez.
.
§ 9º
.
Não, não é possível ler 600 páginas em uma semana. Não é possível. Não é possível. Não é possível. Não é possível. Não é possível.
Lavagem cerebral é apelido.
.
§ 10
.
Chegar em minas não deve ser algo difícil, tampouco que exija um esforço intelectual grande. Nessa hora, o esforço intelectual costuma atrapalhar, inclusive.
.
§ 11
.
Cesare Lombroso não morreu.
.
§ 12
.
Enxergar Norbert Elias, Nietzsche ou Lévinas em 88,88% das reportagens jornalísticas deve ser sintoma de algum transtorno.
Se não existe, inventamos.
.
§ 13
.
.
.
.
.
Trilha sonora do post: Neva Dinova, "Ahh".
.

segunda-feira, maio 15, 2006

10 músicas para se ouvir transando
.

Image Hosted by ImageShack.us

.
O sexo é um presente dos deuses. Eros é a força que une a divisão da natureza, uma energia convergente que amplia os limites sensitivos e estabelece uma sinergia de êxtase. Sexo é psicodélico, psicótico, selvagem, rompedor, sinestésico.
.
Como tudo na vida, também uma boa transa exige uma trilha sonora adequada. Não dá pra ouvir "Hysteria", do Muse, como outro dia eu vi um cara escrever, e achar que isso pode gerar uma boa transa.
.
Errar a música significa errar nos detalhes, assim como não massagear o clitóris, ejaculação precoce, amaciar toques que devem ser firmes, apertar demais os seios, morder, não explorar o corpo feminino --- esse éden que nos é apresentado em breves momentos. Os detalhes são fundamentais. Já disse que Henry Miller é um dos meus pais: então, ouçam a sutileza milleriana, a buceta é fonte infindável de energia em estado bruto, extasiante, capaz de gerar um entorpecimento dos sentidos em um grau praticamente inigualável. A música é outra fonte de Dionísio. A combinação, por isso, é uma celebração da vida.
.
10. Prodigy, "Breathe".
.
Para sexo animal, curto e rápido. Pois às vezes as circunstâncias fazem o monge.
.
9. Garbage, "Queer".
.
Vocal agressivo/sensual/sujo/pervertido de Shirley Manson, em batida cadenciada e doentia, um pouco de barulho estonteante, com letra para lá de maluca. Se bem que, nessa hora, a letra não importa.
.
8. Marvin Gaye, "Let's get it on".
.
"Let's get it on" = "Vamos transar?". Precisa dizer mais?
.
7. Tricky, "Hell is around the corner".
.
Vocais ao estilo black music tradicional, com uma batida meio hip hop -- na verdade, é Isaak Hayes sampleado ---, porém recheada de efeitos e distorções, como se fosse um hip hop chapado de heroína.
.
6. Air, "Cherry blossom girls".
.
Ambiental eletrônico psicodélico. Vocais delicados e macios; melodia aderente; leve como o toque nos lugares mais sensíveis da mulher. Perfeita para as preliminares.
.
5. The Rolling Stones, "Honk Tonk Woman".
.
A representante rock'n'roll do elenco. O rock é um ritmo mais adequado pra cerveja, velocidade, boêmia, etc. Entretanto, os Rolling Stones sempre foram pais da tríade sexo, drogas e rock'n'roll, tendo músicas para todos os gostos. "Honk Tonk Woman" é um blues sensual, perfeito para um strip-tease, carícias, sedução. Sinestesicamente falando, as guitarras e vocais parecem curvas femininas em movimento.
.
4. Cat Power and Karen Elson, "I love you (me either) (Je t'aime mon non plus)".
.
Da deliciosa coletânea "Monsieur Gainsbourg Revisited", da qual o Lúcio Ribeiro falou esses dias, gravações de diversas bandas inglesas de clássicos parisienses, desde os novatos Rakes e Franz Ferdinand a figuras tarimbadas como Michael Stipe (REM), Jarvis Cocker (Pulp) ou Portishead (cuja notícia de música nova me fez baixar com desespero o disco). Essa deliciosa versão de Cat Power esbanja sensualidade nos seus vocais semi-pornôs.
.
3. Mono, "Life in mono".
.
Mais uma banda de trip hop dos anos 90, que lançou apenas um disco. Vocal sensual, ritmo quebrado, chapante. DJ's arranham os discos, violinos e sintetizadores ambientam a voz angelical da vocalista. Uma ambiência barrôca em vocais doces. Acompanha os movimentos.
.
2. Massive Attack, "Dissolved Girl".
.
Sintetizadores deslizam suave e densamente, como camadas de sangue resvalando. Um vocal doce e rasgado irrompe e somos jogamos em uma atmosfera pesada, nua, satânica. O clima está posto: a luz foi apagada, o sol morreu. "Need a little love to lose the pain". Ritmo quebrado, instrumental sujo, mas leve, psicodelia em círculos. CORPOS. Som para orgasmos múltiplos.
.
1. Portishead, "Glory Box".
.
Absoluta. O HINO do sexo. Uma batida perfeita, vocais hipersensuais, de uma beleza pornô e, ao mesmo tempo, sem um pingo de apelo ou agressividade. A simples e pura beleza do sexo. Pura como um corpo nu feminino, mas tão fatal quanto. Espiritualização do prazer. Dionísiaca.
.
Tá bom? Agora pode jogar no lixo teus clichês de Tears for Fears e Sade. Porque "Woman in chains" é SEMPRE ruim, não importam as circunstâncias.

domingo, maio 14, 2006

Reflexões sobre os ataques do PCC em São Paulo
.
Nenhuma posição é mais cômoda socialmente do que a de vítima. A coluna jornalística mais popular aqui no RS, por exemplo, utiliza no mínimo em seis a cada dez edições a estratégia de vitimização. É cômodo que nós, fracos de espírito, pretendamos ignorar a tragicidade do real e, com isso, saiamos em busca de uma solução metafísica para nos proteger. Uma delas é que a sociedade é composta por homens bons, pagadores de impostos, que são constantemente atacados por selvagens cruéis.
.
Costumamos conceber a sociedade como algo estático, uma porção de gente agrupada [os "cidadãos de bem"] e formam uma espécie de "ente". Ignoramos, em primeiro lugar, que Norbert Elias demonstrou, há mais de 80 anos, que é impossível conceber a sociedade como algo "fora" do nós mesmos. O que é a sociedade? Onde ela está? Fumaça no ar. Segundo: a sociedade é apenas um "nome", um nome para certas práticas que formam um tecido que, incessamente, é tecido e destecido, feito e re-feito. Não existe algo "lá fora", sociedade. O que existe somos nós e nossas práticas. Sociedade é um nome para isso.
.
Por isso, a sociedade em que vivemos, e aqui, reitero, a sociedade entendida como um nome, é uma construção que, tijolo por tijolo, é feita e desfeita por nós mesmos, e mais ninguém. Ou alguém acha que, morrendo todos nós, ainda existirá uma "sociedade", uma entidade colorida, quem sabe, ou com cheiro de colônia de amante de homem médio?
.
A sociedade que vivemos é a sociedade que estamos construindo. Não estou aqui querendo inocentar ninguém, nem dizer que criminosos são coitadinhos ou coisa do gênero. Só estou dizendo que esse grau de ultra-violência [Kubrick hoje?] que vivemos é obra de nós mesmos, à medida em que estamos tecendo nossas relações dessa forma. A pose de vítima é confortável --- mas todas as pontas da rede [entendam rede literalmente, como um conjunto de fios] são tecidas pelas nossas práticas.
.
A violência que nos assusta é produto de nós mesmos. A violência é onipresente. Ela é um continuum, permanente, integrante de nós mesmos. Negar o nosso lado violento é ignorar Freud, é ignorar nossas pulsões de morte, nossas celebrações coletivas da morte. Não somos anjos. Acreditar que Direito Penal e punição podem resolver isso merece apenas uma risada homérica. Até porque o Direito Penal nunca elimina a violência, apenas substitui uma por outra, pois ele próprio é violência.
.
Precisamos de mais Norbert Elias e Nietzsche na nossa consciência: todas as relações sociais são implicadas. Tudo se liga. A minha atitude aqui não reflete só na bolha em que vivo, porque eu não vivo em uma bolha. A minha ponta da rede atinge a totalidade da rede. Não somos uma soma de indivíduos, mas uma rede em que todos estão ligados. Ao tecermos da forma que estamos tecendo nossa rede, estamos criando PCC, falcões, Comando Vermelho, etc. É preciso dizer sim ao trágico de vez, aceitar a nossa violência, e lidar com ela sem ignorá-la. É preciso se sentir responsável, e não vítima. O fraco olha o forte e lhe culpa pela sua fraqueza: diz, assim, que ele é mau. Não precisamos mais de bem e mal; nem de bruxas ou hereges; é hora de olhar para nós mesmos e assumir, de vez, a responsabilidade. O PCC somos nós, não apenas "eles".
.
Se não olharmos logo para o problema, ele irá nos devorar.
.
.
.
Trilha sonora do post: Jewel, "Stephenville, TX".

quarta-feira, maio 10, 2006

HYPÔMETRO SOMEPILLS - OS 10 MAIS OUVIDOS
.
10. Beth Gibbons & Rustin' Man, "Out of season" (2002).
.
Image Hosted by ImageShack.us
.
Lindo álbum da espetacular vocalista do Portishead, a banda há mais tempo devedora de um novo disco [até perdi das esperanças, desde 2003 venho escrevendo isso]. Aqui, mais do que nunca, o clima invernal carrega sensibilidade e densidade. Confiram os diversos timbres que a Beth é capaz, desde Billie Holiday [Romance] até seu próprio estilo [Funny time of year].
.
Arrisque: "Funny Time of Year", "Sand River".
.
9. Richard Ashcroft, "Keys to the world" (2006).
.
Image Hosted by ImageShack.us
.
Ashcroft nunca negou a influência da música negra americana. Mais do que nunca, no seu atual trabalho há uma pegada soul, fortemente focada nos vocais. Só ouvir essa abençoada voz já, por si só, justifica o disco.
.
Arrisque: "Cry 'til the morning", "Words just get in the way".
.
8. Grandaddy, "The sophtware slump" (2000).
.
Image Hosted by ImageShack.us
.
Espetacular disco dessa banda que nunca erra. Experimentalismo moderado em melodias leves, pop espacial para ninguém botar defeito, nesse disco conceitual muito acima da média.
.
Arrisque: "He's simples, he's dumb, he's a pilot", "So you'll aim towards the sky".
.
7. The Raconteurs, "Broken boy soldier" (2006).
.
Image Hosted by ImageShack.us
.
Finalmente Jack White se apresenta com banda completa. Apesar de bem sucedido nos Stripes, montou esse projeto paralelo com Brendan Branson e mandou bala, num revival setentista competente pra cacete. Riffs bem tirados ["Steady as she goes"], baladas ["Together"] ou blues envenenados ["Blue veins"] são trunfos na mão de Jack.
.
Arrisque: "Steady as she goes", "Intimate secretary".
.
6. The Verve, "Urban Hymns" (1997).
.
Image Hosted by ImageShack.us
.
Tudo. Álbum magnânimo. Não tenho palavras para descrever a estúpida capacidade desses músicas de transgredirem os limites da sanidade. Baladas com harmonias cuidadosamente trabalhadas ["Sonnet", "The Drugs don't work", "Lucky Man"], delírios shoegazers ["Come on", "Rolling People"], rocks espetaculares ["Bittersweet", "Space and Time"], etc.
.
Arrisque: "Lucky Man", "Space and time".
.
5. Radiohead, "Airbag / How am I driving?" (EP/
.
Image Hosted by ImageShack.us
.
Precisa dizer mais? Radiohead fase Ok Computer, em um EP de 07 músicas. Da perfeição fria de "Pearly" ou "A Reminder", a guitarreira ao estilo The Bends de "Palo Alto" ao experimentalismo [ainda comportado, mas anunciando o magistral "Kid A"] de "Meeting in the aisle". Algumas tão boas, tão boas, que poderiam até integrar uma das maiores obras-primas da arte universal.
.
Arrisque: "Pearly", "A Reminder".
.
4. Bright Eyes, "One judge of wine, two vessels" (EP/2004)
.
Image Hosted by ImageShack.us.
.
Esse EP, gravado junto com a banda Neva Dinova, é um achado de baladas preciosas, um folk suave e bem trabalhado. Sobretudo, melodias belíssimas. Vem me ajudando a agüentar as manhãs nos últimos três, quatro meses. Uma boa companhia de café.
.
Arrisque: "I'll be your friend", "Get Back".
.
3. Flaming Lips, "Yoshimi battles the pink robots" (2002).
.
Image Hosted by ImageShack.us
.
Os Flaming Lips, banda mais exótica do cenário rock mundial, não mais na guitarreira de "Clous taste metallic", mas sim em um pop psicodélico, com melodias esplêndidas e uma dose razoável de experimentalismo, tudo extremamente agradável. Viagem freak. LSD.
.
Arrisque: "In the morning with the magicians", "Ego tripping at the gates of hell".
.
2. Secret Machines, "Ten Silver Drops" (2006).
.
Image Hosted by ImageShack.us
.
Verve, My Bloody Valentine, Floyd, Zep, Grandaddy, etc., todos numa salada mista decorada de emoções sinceras. Guitarras, riffs, psicodelia, doença, depressão, viagem, sol, chuva, vento. Esse disco me emocionou.
.
Arrisque: "Alone, jealous and stoned", "All at once (it's not important)".
.
1. Mercury Rev, "The desert's songs" (1998).
.
Image Hosted by ImageShack.us
.
SUBLIME. Ganhou um post, tá logo ali embaixo. Sonho. Leveza. Melodia. Beleza. Loucura.
.
Arrisque: "Holes", "The funny bird".
.

sábado, maio 06, 2006

Any given Saturday
Sábado à noite, após um dia conturbado que começou com aula pela manhã, passou por um descanso breve à tarde e, agora, a imensidão de tarefas. Ao meu redor, Norbert Elias, Lyotard, Foucault, Nietzsche, Roberto Machado e Ricardo Timm --- todos me observando, impiedosos nas suas considerações densas que agora cabe a mim destrinchar. Chimarrão, guaraná e jazz.
Já tive noites melhores onde, pelo menos, estava bem acompanhado.
Não atendo meus amigos porque será terrível recusar convites para sair, considerando a imensa solidão que sinto. Tento ouvir um som suave para me acalmar, MPB, depois jazz. Pizza, quinze minutos de televisão e, depois, leitura. E ainda a terrível perspectiva de, em pleno domingo, acordar antes do meio dia.
Emendar um fim-de-semana acordando cedo com a rotina diária que impõe... acordar cedo? Pesadelo. Esse mestrado está me comendo a carne.
Claro, meus amigos, é só isso que tenho para dizer para vocês. Minha vida anda flutuando por aí --- teoria, teoria, teoria, trabalho, trabalho, trabalho. Intercalo, raramente, um futebol ou noite, mas pouca coisa.
E só. Quando resolvi começar a escrever, e lá se vão muitos anos, sempre procurei adotar um estilo corrosivo, ácido, explosivo. Nietzsche e Henry Miller sempre foram meus guias. Hoje, no entanto, o teor está excessivamente confessional e, por isso, desnecessário.
Aproveitem a vida.
Trilha sonora do post: Miles Davis, "So what".

quinta-feira, maio 04, 2006

BIBLIOTECA SOMEPILLS - Fragmentos de um livro não escrito
(Torre de Marfim, de 1999)
....
II

Sobre a mesa, uma taça. Tem a haste comprida e transparente, fina como o cálice de uma rosa; tem a estrutura dura e leve, feita de cristal para se consumir ali qualquer espécie de líquido. A taça escarlate. Uma taça, de vinho. A taça e o vinho são uma coisa só, uma só sensação, uma só energia. Eu, um ditador.
Observo o vinho que vai se amontoando molécula por molécula dentro daquela taça, aproveitando os espaços vazios que ali se apresentam. A taça, de vinho, de vinho de sangue. Sim, sangue vermelho, quase preto, esse sangue que é vinho dentro da taça. A taça, somente, encima da mesa. Uma taça de vinho, de vinho de sangue.
Como se sua superfície esférica se curvasse em minha direção e o sangue que ali dentro estivesse me chamasse a ser degustado, a taça se oferece. Eu hesito. O sangue se acumula de forma abundante por todos os cantos daquela imensa taça que está sozinha sobre a mesa, se oferece, se curva perante a minha potência. Eu hesito novamente.
Então olho fixamente para o interior daquele cristal, vejo um líquido negro, denso, quase pastoso, se amontoar dentro de uma bola oca. É vinho. O vinho do sangue do povo. Observo novamente, hesito, agarro o cálice com força, coloco minha boca em contato com o cristal. Tenho uma sensação de frieza e solidão. É como se por dentro de todo aquele cristal estivesse o inferno. Mas, na verdade, são sensações quentes cobertas sobre uma fina película de gelo.
Quero beber somente uma gota, mas o vinho começa a me embriagar, a me encher de prazer e potência, me sinto senhor de tudo e de todos, não paro um segundo de beber, e não me importa esvaziar a taça. Mas uma gota, uma gota de sangue escorre pela mesa ? uma gota apenas! ? e com essa pequena gota começa a se formar um rio, um rio de sangue e lágrimas, um rio que vai aumentando o volume enquanto eu bebo vinho.
Olho para os lados, sinto ojeriza ? eu fiz tudo isso? E o meu sonho, de ser senhor de tudo bebendo apenas uma gota? Mas a taça está vazia. Enfim, faço um tratado e imploro a paz.

III

Morrer e não ser compreendido.
Uma árvore, cravada no chão, com suas raízes encalacradas dentro do cimento humano, do cimento da sociedade, da civilização. Desenvolvo-me na terra, abaixo de tudo, no submundo, no subterrâneo.
Formigas caminham pelos espaços que a areia permite, a raiz vai crescendo, logo eu baterei de cabeça com a superfície, e então será o fim. Eles pisam em mim, sinto as solas dos seus sapatos sobre a minha raiz, empurrando cada vez mais o cimento contra mim, empurrando as pedras para baixo, a fim de me esmagar.
A árvore se desenvolve, mesmo assim. A raiz cresce vigorosa e nua, penetrando cada vez mais fundo na terra, conhecendo o alvorecer do subterrâneo. Ela começa a dar origem a uma planta, a semente dos séculos de sabedoria cumpriu seu dever. O tronco é vigoroso e grosso, como se fosse de aço, e a raiz penetra profundamente no solo. Sugando água do subterrâneo, ela alimenta os frutos que mais tarde serão comidos pela civilização. Ela se conforma em apodrecer, em perecer, desde que sua sabedoria, se não aplaudida, seja ao menos exposta.
Boto as folhas para fora do meu corpo, sinto meus olhos aderirem à claridade do mundo, e me vejo equilibrado, coerente e flutuante sobre o solo. Sinto como se meu tronco furasse o céu e subisse até o infinito ? como se eliminasse as mazelas superficiais e penetrasse no escuridão do céu e da terra.
A raiz dessa árvore é tão profunda que escava até o inferno, fura-o, vê outro submundo, um submundo de indiferença bestial, de aplausos inéditos a espetáculos onde a carniça é degustada ? um teatro onde não há cadeiras e todos se matam no palco.
Por outro lado, o caule, forte e rígido, sobe até o céu e lá vê nuvens se desfazendo, vê espetáculos onde a risada corre solta, vê seres estranhos que desaparecem com um assopro, sonhos despedaçados, vê ambições escondidas caindo como raios sobre a terra. O caule perfura o céu e sobe até o infinito, onde contempla um absoluto que não fazia parte dos planos do vegetal:
O homem.

IV

As araucárias se acham superiores às outras plantas. Acreditam ser as plantas mais evoluídas e que seu império de sabedoria e perfeição deve cruzar os limites dos territórios em que suas sementes são plantadas.
Não acreditam em Darwin... querem o território espinhoso, o deserto, o ártico, querem o gelo e o fogo. Se acham senhoras do mundo, donas da natureza mais poderosa e, portanto, da cultura mais evoluída. Não sabem que não sobreviveriam se o território fosse mais árido, ou se outros fatores a fizessem apodrecer.
Não acreditam em nada que não seja sua cultura. O modo como são cultivadas, suas sementes caídas pelo chão, o modo puro de ser de cada uma lhes é o símbolo da perfeição. Querem se expandir pelo Oriente, levar para lá sua sabedoria e retirar das plantas mais pobres seus conhecimentos inúteis.
Só o que é araucária é útil.

V

Caminho pela miséria da civilização. Roupas em trapos, traços perdidos em folhas de papel, palavras soltas ao ar ? uivos, talvez nem isso, uivos pedindo salvação ? tudo isso fede a apodrecimento vital. Nossa maior doença é estarmos mortos.
Pelo contrário, a árvore demonstra vitalidade e persistência: ela luta contra o vento, contra o solo, contra o cimento. Olho para a rua com meus óculos infravermelhos e enxergo o sangue das pessoas, seus sofrimentos, suas doenças, suas desgraças. Tudo isso é vida ? e, ao que parece ? tudo isso a nós é considerado negativo e praticamente letal.
Nada me apavora mais do que o suicídio, por exemplo. Se, por um lado, representa o triunfo da vontade sobre a natureza, o triunfo do humano sobre o divino ? ou sobre o destino ? por outro representa a insignificância de um ser que nega o ser, que nega a vida. A noite e o dia são uma coisa só, são faces da mesma moeda ? como o veneno que é antídoto e o antídoto que é veneno. Tudo são circunstâncias. Negar o ser, entretanto, consiste em um ato de desesperada fraqueza, de renúncia, de derrota.
É o homem que sucumbe, que desiste, que admite a derrota. Aquele que é grande aceita a tragédia, o pessimismo, da mesma forma que aceita a glória e a vitória.
Mas o mundo é povoado de formigas. Formigas que caminham freqüentemente em direção ao trabalho e sucumbem a uma rainha que manda e desmanda, que goza de todas as virtudes e tem as outras como meras escravas. A modernidade se equipara, muitas vezes, à servidão, ao rebaixamento, à escravidão. Proclamamos a abolição frente aos Senhores ? mas e quanto à escravidão frente ao tesouro, o acumulado, o fortificado e petrificado pela ação do tempo, da corrupção, da usurpação e da violência ? até quando seremos formigas servas da tradição?
Vomitei as doçuras desse texto, de agora em diante não esclarecerei mais nada.