BIBLIOTECA SOMEPILLS - Fragmentos de um livro não escrito
(Torre de Marfim, de 1999)
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II
Sobre a mesa, uma taça. Tem a haste comprida e transparente, fina como o cálice de uma rosa; tem a estrutura dura e leve, feita de cristal para se consumir ali qualquer espécie de líquido. A taça escarlate. Uma taça, de vinho. A taça e o vinho são uma coisa só, uma só sensação, uma só energia. Eu, um ditador.
Observo o vinho que vai se amontoando molécula por molécula dentro daquela taça, aproveitando os espaços vazios que ali se apresentam. A taça, de vinho, de vinho de sangue. Sim, sangue vermelho, quase preto, esse sangue que é vinho dentro da taça. A taça, somente, encima da mesa. Uma taça de vinho, de vinho de sangue.
Como se sua superfície esférica se curvasse em minha direção e o sangue que ali dentro estivesse me chamasse a ser degustado, a taça se oferece. Eu hesito. O sangue se acumula de forma abundante por todos os cantos daquela imensa taça que está sozinha sobre a mesa, se oferece, se curva perante a minha potência. Eu hesito novamente.
Então olho fixamente para o interior daquele cristal, vejo um líquido negro, denso, quase pastoso, se amontoar dentro de uma bola oca. É vinho. O vinho do sangue do povo. Observo novamente, hesito, agarro o cálice com força, coloco minha boca em contato com o cristal. Tenho uma sensação de frieza e solidão. É como se por dentro de todo aquele cristal estivesse o inferno. Mas, na verdade, são sensações quentes cobertas sobre uma fina película de gelo.
Quero beber somente uma gota, mas o vinho começa a me embriagar, a me encher de prazer e potência, me sinto senhor de tudo e de todos, não paro um segundo de beber, e não me importa esvaziar a taça. Mas uma gota, uma gota de sangue escorre pela mesa ? uma gota apenas! ? e com essa pequena gota começa a se formar um rio, um rio de sangue e lágrimas, um rio que vai aumentando o volume enquanto eu bebo vinho.
Olho para os lados, sinto ojeriza ? eu fiz tudo isso? E o meu sonho, de ser senhor de tudo bebendo apenas uma gota? Mas a taça está vazia. Enfim, faço um tratado e imploro a paz.
III
Morrer e não ser compreendido.
Uma árvore, cravada no chão, com suas raízes encalacradas dentro do cimento humano, do cimento da sociedade, da civilização. Desenvolvo-me na terra, abaixo de tudo, no submundo, no subterrâneo.
Formigas caminham pelos espaços que a areia permite, a raiz vai crescendo, logo eu baterei de cabeça com a superfície, e então será o fim. Eles pisam em mim, sinto as solas dos seus sapatos sobre a minha raiz, empurrando cada vez mais o cimento contra mim, empurrando as pedras para baixo, a fim de me esmagar.
A árvore se desenvolve, mesmo assim. A raiz cresce vigorosa e nua, penetrando cada vez mais fundo na terra, conhecendo o alvorecer do subterrâneo. Ela começa a dar origem a uma planta, a semente dos séculos de sabedoria cumpriu seu dever. O tronco é vigoroso e grosso, como se fosse de aço, e a raiz penetra profundamente no solo. Sugando água do subterrâneo, ela alimenta os frutos que mais tarde serão comidos pela civilização. Ela se conforma em apodrecer, em perecer, desde que sua sabedoria, se não aplaudida, seja ao menos exposta.
Boto as folhas para fora do meu corpo, sinto meus olhos aderirem à claridade do mundo, e me vejo equilibrado, coerente e flutuante sobre o solo. Sinto como se meu tronco furasse o céu e subisse até o infinito ? como se eliminasse as mazelas superficiais e penetrasse no escuridão do céu e da terra.
A raiz dessa árvore é tão profunda que escava até o inferno, fura-o, vê outro submundo, um submundo de indiferença bestial, de aplausos inéditos a espetáculos onde a carniça é degustada ? um teatro onde não há cadeiras e todos se matam no palco.
Por outro lado, o caule, forte e rígido, sobe até o céu e lá vê nuvens se desfazendo, vê espetáculos onde a risada corre solta, vê seres estranhos que desaparecem com um assopro, sonhos despedaçados, vê ambições escondidas caindo como raios sobre a terra. O caule perfura o céu e sobe até o infinito, onde contempla um absoluto que não fazia parte dos planos do vegetal:
O homem.
IV
As araucárias se acham superiores às outras plantas. Acreditam ser as plantas mais evoluídas e que seu império de sabedoria e perfeição deve cruzar os limites dos territórios em que suas sementes são plantadas.
Não acreditam em Darwin... querem o território espinhoso, o deserto, o ártico, querem o gelo e o fogo. Se acham senhoras do mundo, donas da natureza mais poderosa e, portanto, da cultura mais evoluída. Não sabem que não sobreviveriam se o território fosse mais árido, ou se outros fatores a fizessem apodrecer.
Não acreditam em nada que não seja sua cultura. O modo como são cultivadas, suas sementes caídas pelo chão, o modo puro de ser de cada uma lhes é o símbolo da perfeição. Querem se expandir pelo Oriente, levar para lá sua sabedoria e retirar das plantas mais pobres seus conhecimentos inúteis.
Só o que é araucária é útil.
V
Caminho pela miséria da civilização. Roupas em trapos, traços perdidos em folhas de papel, palavras soltas ao ar ? uivos, talvez nem isso, uivos pedindo salvação ? tudo isso fede a apodrecimento vital. Nossa maior doença é estarmos mortos.
Pelo contrário, a árvore demonstra vitalidade e persistência: ela luta contra o vento, contra o solo, contra o cimento. Olho para a rua com meus óculos infravermelhos e enxergo o sangue das pessoas, seus sofrimentos, suas doenças, suas desgraças. Tudo isso é vida ? e, ao que parece ? tudo isso a nós é considerado negativo e praticamente letal.
Nada me apavora mais do que o suicídio, por exemplo. Se, por um lado, representa o triunfo da vontade sobre a natureza, o triunfo do humano sobre o divino ? ou sobre o destino ? por outro representa a insignificância de um ser que nega o ser, que nega a vida. A noite e o dia são uma coisa só, são faces da mesma moeda ? como o veneno que é antídoto e o antídoto que é veneno. Tudo são circunstâncias. Negar o ser, entretanto, consiste em um ato de desesperada fraqueza, de renúncia, de derrota.
É o homem que sucumbe, que desiste, que admite a derrota. Aquele que é grande aceita a tragédia, o pessimismo, da mesma forma que aceita a glória e a vitória.
Mas o mundo é povoado de formigas. Formigas que caminham freqüentemente em direção ao trabalho e sucumbem a uma rainha que manda e desmanda, que goza de todas as virtudes e tem as outras como meras escravas. A modernidade se equipara, muitas vezes, à servidão, ao rebaixamento, à escravidão. Proclamamos a abolição frente aos Senhores ? mas e quanto à escravidão frente ao tesouro, o acumulado, o fortificado e petrificado pela ação do tempo, da corrupção, da usurpação e da violência ? até quando seremos formigas servas da tradição?
Vomitei as doçuras desse texto, de agora em diante não esclarecerei mais nada.
Sobre a mesa, uma taça. Tem a haste comprida e transparente, fina como o cálice de uma rosa; tem a estrutura dura e leve, feita de cristal para se consumir ali qualquer espécie de líquido. A taça escarlate. Uma taça, de vinho. A taça e o vinho são uma coisa só, uma só sensação, uma só energia. Eu, um ditador.
Observo o vinho que vai se amontoando molécula por molécula dentro daquela taça, aproveitando os espaços vazios que ali se apresentam. A taça, de vinho, de vinho de sangue. Sim, sangue vermelho, quase preto, esse sangue que é vinho dentro da taça. A taça, somente, encima da mesa. Uma taça de vinho, de vinho de sangue.
Como se sua superfície esférica se curvasse em minha direção e o sangue que ali dentro estivesse me chamasse a ser degustado, a taça se oferece. Eu hesito. O sangue se acumula de forma abundante por todos os cantos daquela imensa taça que está sozinha sobre a mesa, se oferece, se curva perante a minha potência. Eu hesito novamente.
Então olho fixamente para o interior daquele cristal, vejo um líquido negro, denso, quase pastoso, se amontoar dentro de uma bola oca. É vinho. O vinho do sangue do povo. Observo novamente, hesito, agarro o cálice com força, coloco minha boca em contato com o cristal. Tenho uma sensação de frieza e solidão. É como se por dentro de todo aquele cristal estivesse o inferno. Mas, na verdade, são sensações quentes cobertas sobre uma fina película de gelo.
Quero beber somente uma gota, mas o vinho começa a me embriagar, a me encher de prazer e potência, me sinto senhor de tudo e de todos, não paro um segundo de beber, e não me importa esvaziar a taça. Mas uma gota, uma gota de sangue escorre pela mesa ? uma gota apenas! ? e com essa pequena gota começa a se formar um rio, um rio de sangue e lágrimas, um rio que vai aumentando o volume enquanto eu bebo vinho.
Olho para os lados, sinto ojeriza ? eu fiz tudo isso? E o meu sonho, de ser senhor de tudo bebendo apenas uma gota? Mas a taça está vazia. Enfim, faço um tratado e imploro a paz.
III
Morrer e não ser compreendido.
Uma árvore, cravada no chão, com suas raízes encalacradas dentro do cimento humano, do cimento da sociedade, da civilização. Desenvolvo-me na terra, abaixo de tudo, no submundo, no subterrâneo.
Formigas caminham pelos espaços que a areia permite, a raiz vai crescendo, logo eu baterei de cabeça com a superfície, e então será o fim. Eles pisam em mim, sinto as solas dos seus sapatos sobre a minha raiz, empurrando cada vez mais o cimento contra mim, empurrando as pedras para baixo, a fim de me esmagar.
A árvore se desenvolve, mesmo assim. A raiz cresce vigorosa e nua, penetrando cada vez mais fundo na terra, conhecendo o alvorecer do subterrâneo. Ela começa a dar origem a uma planta, a semente dos séculos de sabedoria cumpriu seu dever. O tronco é vigoroso e grosso, como se fosse de aço, e a raiz penetra profundamente no solo. Sugando água do subterrâneo, ela alimenta os frutos que mais tarde serão comidos pela civilização. Ela se conforma em apodrecer, em perecer, desde que sua sabedoria, se não aplaudida, seja ao menos exposta.
Boto as folhas para fora do meu corpo, sinto meus olhos aderirem à claridade do mundo, e me vejo equilibrado, coerente e flutuante sobre o solo. Sinto como se meu tronco furasse o céu e subisse até o infinito ? como se eliminasse as mazelas superficiais e penetrasse no escuridão do céu e da terra.
A raiz dessa árvore é tão profunda que escava até o inferno, fura-o, vê outro submundo, um submundo de indiferença bestial, de aplausos inéditos a espetáculos onde a carniça é degustada ? um teatro onde não há cadeiras e todos se matam no palco.
Por outro lado, o caule, forte e rígido, sobe até o céu e lá vê nuvens se desfazendo, vê espetáculos onde a risada corre solta, vê seres estranhos que desaparecem com um assopro, sonhos despedaçados, vê ambições escondidas caindo como raios sobre a terra. O caule perfura o céu e sobe até o infinito, onde contempla um absoluto que não fazia parte dos planos do vegetal:
O homem.
IV
As araucárias se acham superiores às outras plantas. Acreditam ser as plantas mais evoluídas e que seu império de sabedoria e perfeição deve cruzar os limites dos territórios em que suas sementes são plantadas.
Não acreditam em Darwin... querem o território espinhoso, o deserto, o ártico, querem o gelo e o fogo. Se acham senhoras do mundo, donas da natureza mais poderosa e, portanto, da cultura mais evoluída. Não sabem que não sobreviveriam se o território fosse mais árido, ou se outros fatores a fizessem apodrecer.
Não acreditam em nada que não seja sua cultura. O modo como são cultivadas, suas sementes caídas pelo chão, o modo puro de ser de cada uma lhes é o símbolo da perfeição. Querem se expandir pelo Oriente, levar para lá sua sabedoria e retirar das plantas mais pobres seus conhecimentos inúteis.
Só o que é araucária é útil.
V
Caminho pela miséria da civilização. Roupas em trapos, traços perdidos em folhas de papel, palavras soltas ao ar ? uivos, talvez nem isso, uivos pedindo salvação ? tudo isso fede a apodrecimento vital. Nossa maior doença é estarmos mortos.
Pelo contrário, a árvore demonstra vitalidade e persistência: ela luta contra o vento, contra o solo, contra o cimento. Olho para a rua com meus óculos infravermelhos e enxergo o sangue das pessoas, seus sofrimentos, suas doenças, suas desgraças. Tudo isso é vida ? e, ao que parece ? tudo isso a nós é considerado negativo e praticamente letal.
Nada me apavora mais do que o suicídio, por exemplo. Se, por um lado, representa o triunfo da vontade sobre a natureza, o triunfo do humano sobre o divino ? ou sobre o destino ? por outro representa a insignificância de um ser que nega o ser, que nega a vida. A noite e o dia são uma coisa só, são faces da mesma moeda ? como o veneno que é antídoto e o antídoto que é veneno. Tudo são circunstâncias. Negar o ser, entretanto, consiste em um ato de desesperada fraqueza, de renúncia, de derrota.
É o homem que sucumbe, que desiste, que admite a derrota. Aquele que é grande aceita a tragédia, o pessimismo, da mesma forma que aceita a glória e a vitória.
Mas o mundo é povoado de formigas. Formigas que caminham freqüentemente em direção ao trabalho e sucumbem a uma rainha que manda e desmanda, que goza de todas as virtudes e tem as outras como meras escravas. A modernidade se equipara, muitas vezes, à servidão, ao rebaixamento, à escravidão. Proclamamos a abolição frente aos Senhores ? mas e quanto à escravidão frente ao tesouro, o acumulado, o fortificado e petrificado pela ação do tempo, da corrupção, da usurpação e da violência ? até quando seremos formigas servas da tradição?
Vomitei as doçuras desse texto, de agora em diante não esclarecerei mais nada.