COMPLEXO DE VIRA-LATA
Nelson Rodrigues, um grande leitor da psicologia tupiniquim, definiu o brasileiro como portador de "complexo de vira-lata". Lendo o artigo de Gerdau Johanpeter na ZH de domingo, não posso deixar de concordar violentamente com o mestre torcedor do Fluminense.
Gerdau afirma que a lei de tolerância zero no trânsito marca um novo momento, em que a tolerância deixará de ser vista como virtude e pararemos de tolerar condutas como jogar lixo na rua e relaciona isso com condutas como a dos "sanguessugas", do "mensalão" ou do DETRAN. A tolerância afetaria a "credibilidade das instituições" e daí por diante.
Gerdau, em um certo momento, cita seu grande referencial: Rudolf Giuliani, Prefeito de Nova York que implementou o "Programa de Tolerância Zero".
É aqui que, precisamente, entra nosso "complexo de vira-lata". É impressionante como agora se repete a experiência de NY como se fosse um mantra em solo gaúcho, vangloriando o "milagre" da redução da criminalidade. Nada de fala das ácidas críticas criminológicas ao programa -- basta ler, por exemplo, um Jock Young ou um Loïc Wacquant --, que não encontra unanimidade nem na academia norte-americana, tampouco da redução idêntica do nível de delitos em outras cidades norte-americanas sem a adoção do slogan e baseada em outros modelos de segurança, a exemplo do policiamento comunitário. Aliás, o Tolerância Zero é reduzido ao seu aspecto mais cretino, que é exatamente a intolerância aos pequenos delitos, tese de James Wilson que NÃO foi implementada ao todo em NY, sem se falar, p. ex., da redução drástica da corrupção e o investimento na polícia. A Tolerância Zero teve público, e certamente os executivos de Wall Street não estavam muito preocupados com os esquadrões de Giuliani, apesar dos seus white-collar crimes.
O que me leva ao segundo ponto do complexo de vira-lata: por que raios achamos que nossos políticos que cometem fraudes de mensalão e DETRAN são corruptos e os EUA são exemplo, quando Bush "inventou" uma guerra para pagar seus lobbies armamentista e imobiliário e entope o Iraque de empresas de segurança vinculadas aos seus assessores? Isso não é corrupção? Não é corrupção gastar bilhões em um conflito que visa a encher os bolsos das petrolíferas dos EUA? Quem de nós não enxerga a tremenda corrupção que existe nos EUA, locupletando um complexo-industrial militar que tenta transformar a democracia norte-americana em plutocracia?
Terceiro ponto do "complexo de vira-lata": Gerdau não refletiu sobre nada disso. Nosso autoritarismo, como diz Eugenio Raúl Zaffaroni, é um "autoritarismo cool", baseado em slogans publicitários ("tolerância zero", "janelas quebradas") e consiste num mimetismo patético das elites latino-americanas do comportamento dos vizinhos do Norte, sem se atentar para as peculiaridades presentes no contexto do Sul. Não é mais o autoritarismo fundamentado, o aparato científico-racista-nacionalista do Nazismo, mas um autoritarismo raso, publicitário, cosmético, superficial e cheio de slogans que encerram discussões. O "Tolerância Zero" de Giuliani, por exemplo, é um mantra repetido ad nauseam, sem que percebamos que Giuliani sequer conseguiu ser eleito candidato republicano esse ano, e que Jock Young afirma que temos tanto para aprender com o TZ quanto com os Gulags soviéticos, os Lager nazistas e assim por diante.
É difícil discutir o papel da tolerância com esses autoritários "cools". Mas talvez seja útil recomendar uma releitura em Voltaire e Beccaria para convencê-los que ela é um dos pilares da nossa civilização moderna.
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