Mox in the Sky with Diamonds

terça-feira, abril 21, 2009



A ASTÚCIA DOS VENCEDORES

DESDE O FIM DO ESTADO DE BEM-ESTAR, as palavras que estão na moda para contrariar políticas que beneficiam os pobres e marginalizados são "paternalismo", "assistencialismo", "vitimização" e outras (no vocabulário mais ou menos culto). A estratégia é culpar os próprios pobres pela pobreza (são vagabundos), afirmar que os negros não sofrem preconceito (ao contrário: eles são os preconceituosos por quererem cotas), que os índios são aliados dos EUA (em projetos imperialistas de conquista da Amazônia) ou são também vadios que não querem se integrar à "civilização". Esses marginalizados -- os "vencidos" na história -- nada tem de vítimas; são, na verdade, os agentes da própria desgraça. Por que, então, alguma generosidade? Melhor é apostar na nossa sociedade justa, na qual os melhores se dão bem e, com isso, "progredimos".
Essa discussão volta quando vejo resenhas detonado "As Veias Abertas da América Latina", que recentemente foi dado como presente por Chavez para Barack Obama na última cúpula das Américas. O livro é sempre tratado como "defasado", "ultrapassado para alguns", "excessivamente paternalista com os latino-americanos", etc. Interessante observar que essa estratégia discursiva não costuma estar presente nas resenhas de outros livros. Será que um dia a Veja irá colocar ao lado do livro de Fukuyama a pecha de "ultrapassado"? Ou irá grampear sobre os empresários que defendem a liberdade irrestrita de mercado o estigma de "dinossauros", como fez com o último FSM? Deixa para lá.
O fato é que algumas análises do livro de Eduardo Galeano estão exagerando na dose. É claro que é possível que existam muitos erros históricos e que Galeano tenha passado a mão em alguns aspectos. Perfeitamente possível. Por outro lado, a vítima segue sendo vítima. A América Latina é - SIM - vítima do imperialismo colonial europeu (como não seria!?) e foi saqueada sim pelos portugueses, espanhóis, holandeses, franceses e ingleses. Vão visitar esses países (e outros) e ver a quantidade de Igrejas construídas com NOSSO ouro... Os latino-americanos têm responsabilidade sobre isso? Alguma, sem dúvida. Poderiam ter se rebelado mais fortemente, talvez (e muito sangue seria derramado, pois violência é especialidade do "civilizado" europeu). A estratégia européia foi levada a cabo por meio de elites cretinas (latinas) que até hoje nos governam (a Bolívia é o exemplo mais claro) e baseiam seu papel de elite no saqueamento criminoso e na exploração econômica.
Ah, mas que papinho ultrapassado! Muito mais legal são os livros dos europeus ou norte-americanos contratualistas que eu leio e jogam fora todo esse blá-blá-blá "paternalista". Com todo o respeito, mas isso é mentalidade de colonizado. Não enxergar a violência por trás desse movimento que marginalizou a maioria da população da América Latina é, no mínimo, cegueira (e, daí para diante, má-fé). É tão espúrio quanto responsabilizar os judeus pela Shoah (holocausto), porque seriam "ricos" ou outros motivos tão nojentos que nem vale a pena tentar lembrar. Se extermínio e escravidão viraram coisas "light", é hora de fechar os livros e repensar seus conceitos.
É verdade que existem perspectivas que, ressentidas, ultrapassam o razoável. Acho que de certa forma é como leio Dussel -- algumas vezes as coisas que escreve são absurdas. No entanto, deixar de considerar a vítima o que ela é -- vítima -- é tão criminoso quanto o ato em si (por isso sempre detestei, apesar de ser liberal em matéria penal, a tal "vitimologia"). Índios que viviam pacificamente na América foram massacrados por conquistadores que saquearam nossas riquezas. Negros foram escravizados e depois jogados na precariedade social. Movimentos que tentaram emancipação (Canudos, Palmares) foram dizimados. A América Latina foi saqueada SIM, ainda que com a colaboração da sua própria elite podre.
Repito: retirar o caráter de vítima de quem está nessa condição é tão espúrio quanto dizer que os judeus são responsáveis pela Shoah. Dizer que é "paternalismo" ou "assistencialismo" alguém reconhecer que um índio desnutrido e dizimado precisa de ajuda (não dá tempo de entrar na "esfera pública" e argumentar com os demais) é algo inumano. Hoje, no entanto, a razão cínica orgulha-se do seu cinismo e ri de si mesma. Galeano pode até não ser o melhor livro sobre América Latina, pode ter ultrapassado da justiça para a vingança e, com isso, caído no ressentimento, mas cuidado com a retórica dos vencedores. Eles não venceram pelo mérito, e sim pela violência. E são astutos -- do contrário, não teriam vencido.

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