UMA TEORIA A SER CONSTRUÍDA
OS ROMANOS chamavam de 'capitis diminutio' a capacidade diminuída para os atos da vida civil, podendo perder os "atributos" que lhe são garantidos. Algo ligeiramente difícil de nós, modernos, compreendermos, pois nossa cidadania não é (normativamente) cindida, sendo na realidade "unitária" em torno daquilo que os iluministas chamavam de "homem".
Não resta dúvida que a principal deficiência da democracia é, atualmente, a corrupção - entendida no sentido mais amplo possível - do setor público. Corrupção que não abrange apenas atos criminais propriamente ditos, mas também atos lícitos e até culturalmente legítimos, como o nepotismo e o lobismo. Digo que isso é "corrupção" porque afasta o sentido da república, ou seja, daquilo que não pertence a ninguém, é impessoal, é apenas zelado conjuntamente por todos.
O grande abismo que mergulhamos no entre-guerras com os totalitarismos tornou a democracia indiscutível. Autores como Habermas, Apel, Rorty, Laclau e Mouffe são estrelas da filosofia política com teorias que levam à radicalidade o ideal democrático. Rorty tem até um paper com título "Democracia antes da Filosofia". Indiscutivelmente, é tortuoso criticar a estrutura liberal-democrática que prezamos tanto e cujos remédios foram venenos poderosos. Direitos e garantias são invioláveis. A esfera pública foi contaminada pela idéia democrática: pensamos a partir do estrutura jurídico-política liberal a questão pública.
Agamben nos avisa que "profanar" consiste em retirar uma coisa do âmbito sagrado (a religião, segundo ele, é "separação") e restituir ao livre uso, sem apagar, contudo, o uso anterior. Será possível profanarmos a democracia contemporânea?
Clientelismo, roubalheira, negociata, nepotismo, afiliação, assistencialismo, ausência de transparência, caixa 2 e outras mazelas inundam os periódicos de notícias. Por todos os lados sentimos que precisamos de uma esfera pública mais digna, inclusive por razões políticas estritas: verbas desviadas deveriam alimentar barrigas pobres, assistencialismo normalmente acomoda a corrupção, ineficiência de trocas de cargos recai nos serviços públicos dirigidos aos mais carentes, ausência de transparência em contas eleitorais desequilibra o pleito e causa os problemas subseqüentes.
Creio que "profanar" a democracia significa, hoje, restituir sentido à idéia de "república" e exigir uma "capitis diminutio" ao inverso do candidato ao cargo eletivo. Pensar a questão do exercício do cargo público em termos de uma exigência "extra" em relação ao cidadão comum, que congrega transparência e honestidade. Se continuarmos pensando nossa esfera pública da mesma forma que pensamos a estrutura jurídico-liberal destinada a todo e qualquer cidadão, ela continuará invariavelmente poluída por interesses plutocráticos, coronelistas, burocráticos e financeiro-partidários. Qualquer exigência "extra" ao detentor do cargo público tem sido interpretada como vulneração de garantia. Qualquer restrição estabelecida especialmente em razão do cargo é tida como "capitis diminutio".
Antes de tudo, é preciso ver que - de acordo com o paradigma dominante - os reclamantes estão corretos. O detentor de cargo público que vê seus filhos impedidos de exercerem outro cargo por nomeação realmente vê recaída sobre eles restrição que, em princípio, parece trazer uma diminuição da respectiva capacidade civil. E tem toda razão. Sob o ângulo jurídico, parece estar correto.
O erro é interpretarmos que esse cidadão está em situação de equivalência com o cidadão "comum" que está fora da esfera pública. O cargo público traz consigo ônus e bônus. É preciso distinguir aquele que está na esfera pública para preservar a idéia republicana. Essas restrições - que podem ir de restrições políticas impostas como sanções aos representantes populares (recall, demissão de ministro, etc.) até restrições jurídicas (desde que estabelecidas em lei) que prevejam exigências do ocupante do cargo público. O fundamento jurídico é o princípio constitucional da moralidade e a idéia republicana.
Nada disso mudaria o enfrentamento jurídico-penal da questão. Um parlamentar processado criminalmente, por exemplo, faria jus aos mesmos direitos e garantias de qualquer outro. Mas a responsabilidade política, ou seja, aquela contingente que implica um acréscimo da capacidade deveria ser mais flexível. Venho desenvolvendo essa idéia, que aparentemente colide com o garantismo clássico (aparentemente, pois é diferente Lula despachar José Dirceu - caso que estou falando - de José Dirceu ser condenado criminalmente no STF - caso que permanece hígido o garantismo), há algum tempo (e mais aqui). No entanto, provavelmente jamais terei tempo de desenvolver. Há outras coisas na frente.
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