HOJE, na ZH:
Os sem-palavra, por Moysés da Fontoura Pinto Neto*
Na quarta-feira, Zero Hora publicou reportagem em que trata do "constrangimento" causado pelos moradores de rua. A reportagem foi seguida de debates sobre o tema, partindo-se de uma série de perguntas sobre o que fazer em relação ao "problema".O que chama atenção na reportagem é que nenhum morador de rua teve a palavra. Nenhum morador de rua foi tratado como sujeito. Os "técnicos" que falaram sobre o tema tiveram oportunidade de fazer a abordagem que entenderam adequada, "contra" ou "favorável" aos moradores, mas jamais foi dada, em instante algum, a palavra a algum morador de rua.Isso sinaliza um aspecto: para nós, o morador de rua simplesmente não existe. É como se ele não existisse. Nós não lhe damos a palavra porque ele simplesmente não está ali como alguém, mas como um "problema", e portanto um objeto. O filósofo Emmanuel Levinas, judeu que foi prisioneiro dos campos de concentração e viu sua família dizimada pelo nazismo, propôs, como resposta à catástrofe, um modelo de ética que chamamos de "ética da alteridade". A essência dessa proposta consiste em sempre tratar o outro como alguém, na sua plena diferença, sem que objetivemos esse outro. Levinas viu a si mesmo na condição de representação (o "judeu") e percebeu que a violência nasce quando deixamos de considerar o outro alguém pelo qual somos responsáveis. Todos lutam para definir o papel dos moradores ("pedintes", "bandidos", "vagabundos", "vítimas"), mas ninguém concede a eles o direito de falarem por si mesmos.
Preocupantes são manifestações que trataram conjuntamente o problema dos moradores de rua e da criminalidade: além de preconceituosas e desinformadas (apesar de se reivindicarem "realistas"), instigam o medo, pois, "em estado de preconceito, não existe mais indivíduo, grupo, multidão e nem mesmo, em sentido estrito, massa: apenas existe o Medo", e o medo "é o pai acolhedor que perdoa todos os filhos de sua insensatez" (Timm de Souza). É, na realidade, o combustível do fascismo.
*Professor do Departamento de Ciências Penais da UFRGS, especialista e mestre em Ciências Criminais.
Marcadores: Dose pra mamute, Mídia, Politics, Violência, Φιλοσοφία