VIOLÊNCIA MÍTICA
O DIREITO CONTEMPORÂNEO, no seu narcisismo hiperconstitucionalizante que inclusive suprime a própria possibilidade de experimentar a política em toda sua densidade, não é senão a última tentativa (desesperada?) da democracia liberal de encontrar a solução para o problema da representação. Assim, se os parlamentos estão desmoralizados por todo o mundo, reduzidos a um emaranhado plutocrático sem legitimidade que se enraiza nas velhas e novas oligarquias, se o poder executivo é sempre o risco do autoritarismo, os juristas sonharam um dia que o direito pudesse resolver o problema, implementando as reformas sociais necessárias e promovendo as promessas que a democracia liberal se mostrou muito distante de realizar. O juiz contemporâneo, "defensor dos direitos fundamentais", o Hércules que enfrenta a tudo e a todos na defesa da Constituição, é a última aposta na possibilidade de concretizar o modelo do contrato social e sua pretensão reformista.
Esquecem-se, no entanto, de indagar nossos amigos acerca do que é essa estrutura que invocam como solução. A miopia absoluta em relação ao real funcionamento do sistema judiciário - isto é, seus símbolos, convicções, práticas e liames estruturais -- é mais do que nunca cultivada por essa doutrina desconectada da faticidade, tautológica e asséptica. O juiz surge como um emblema salvador de um sistema político tão desacreditado que se chega ao ponto de limitá-lo em um programa dirigente irrevogável, uma espécie de suspensão da política para a efetivação do direito. Nesse panorama, o juiz ativista é a figura que heroicamente enfrenta os demais poderes e impõe a concretização de direitos, situando-se como espécie de "salvador" da pátria.
Essa doutrina -- preocupada com suas hermenêuticas e ponderações -- esquece a realidade concreta em que o direito efetivamente se processa e quem são os operadores dessa máquina. Não percebe que o aparato jurídico é, de longe, o mais conservador entre todos no Estado Liberal, sendo incapaz de absorver a pluralidade, o debate e a inovação. No seu arcaísmo aristocrático, os operadores do direito não são mais que isso - ou seja - operadores de uma máquina que funciona por si mesma e está aí para não ser mais que nada. O direito pode existir e conceder direitos contanto que eles não interfiram em absoluto no mundo. Com suas togas e vocabulário cômico, os juristas não são pouco parecidos com as figuras burocráticas que habitam os livros de Kafka, não por acaso o maior "processualista" que já passou por esse planeta. Será que esses poderiam ser os "agentes da mudança" que o liberalismo tanto procura entre os "representantes" do povo no poder? Quem percebe a realidade do mundo jurídico vislumbra bem poucas chances disso acontecer. Trata-se, como bem percebe o Salo, de um "planeta sem vida"; opaco, cinzento, empoeirado, fechado.
Uma teoria do direito não pode abstrair de uma genealogia que coloque os pés da teoria no chão. A teoria do contrato social e seus mitos não é mais que metafísica e, como tal, violência mítica. Se Benjamin está certo, tanto a violência que põe quanto a que conserva o direito não é senão a face da mesma violência mítica, aquela que mantém as estruturas históricas intactas e, justamente por isso, faz de todo monumento civilizatório um idêntico monumento de barbárie. As fontes mítico-teológicas do direito são tão transparentes que nem precisaríamos da severa pesquisa de Foucault, Agamben e outros autores para decifrar seus mecanismos. A posição divina do juiz e sua lógica decisória impede qualquer tentativa de não encontrar ali pura teologia. As cerimônias degradantes dos rituais judiciários são confirmações da perpetuação desse mecanismo. A lógica decisória do direito é incapaz de sustentar um processo que queira ser justo ou democrático. Não existe direito -- e isso parece que até autores de ultradireita como Carl Schmitt ou mesmo Jakobs reconhecem -- sem uma violência constituinte que sustenta esse direito; justamente a violência do estado de exceção que é o que verdadeiramente comanda os movimentos dessa máquina. Aqueles que ainda ignoram esse aspecto permanecerão a vida inteira sem entender porque o direito à propriedade rural dos latifundiários é mais efetivo que o direito a um salário mínimo nos padrões constitucionais.
A violência mítica encobre a violência em que se funda, mantendo as estruturas intactas. Em vez disso, poderíamos imaginar uma violência divina que -- situando-se no esfera do puro Dizer -- fecha a porta do direito após a sua consumação e instaura a redenção dos restos da história.
Esquecem-se, no entanto, de indagar nossos amigos acerca do que é essa estrutura que invocam como solução. A miopia absoluta em relação ao real funcionamento do sistema judiciário - isto é, seus símbolos, convicções, práticas e liames estruturais -- é mais do que nunca cultivada por essa doutrina desconectada da faticidade, tautológica e asséptica. O juiz surge como um emblema salvador de um sistema político tão desacreditado que se chega ao ponto de limitá-lo em um programa dirigente irrevogável, uma espécie de suspensão da política para a efetivação do direito. Nesse panorama, o juiz ativista é a figura que heroicamente enfrenta os demais poderes e impõe a concretização de direitos, situando-se como espécie de "salvador" da pátria.
Essa doutrina -- preocupada com suas hermenêuticas e ponderações -- esquece a realidade concreta em que o direito efetivamente se processa e quem são os operadores dessa máquina. Não percebe que o aparato jurídico é, de longe, o mais conservador entre todos no Estado Liberal, sendo incapaz de absorver a pluralidade, o debate e a inovação. No seu arcaísmo aristocrático, os operadores do direito não são mais que isso - ou seja - operadores de uma máquina que funciona por si mesma e está aí para não ser mais que nada. O direito pode existir e conceder direitos contanto que eles não interfiram em absoluto no mundo. Com suas togas e vocabulário cômico, os juristas não são pouco parecidos com as figuras burocráticas que habitam os livros de Kafka, não por acaso o maior "processualista" que já passou por esse planeta. Será que esses poderiam ser os "agentes da mudança" que o liberalismo tanto procura entre os "representantes" do povo no poder? Quem percebe a realidade do mundo jurídico vislumbra bem poucas chances disso acontecer. Trata-se, como bem percebe o Salo, de um "planeta sem vida"; opaco, cinzento, empoeirado, fechado.
Uma teoria do direito não pode abstrair de uma genealogia que coloque os pés da teoria no chão. A teoria do contrato social e seus mitos não é mais que metafísica e, como tal, violência mítica. Se Benjamin está certo, tanto a violência que põe quanto a que conserva o direito não é senão a face da mesma violência mítica, aquela que mantém as estruturas históricas intactas e, justamente por isso, faz de todo monumento civilizatório um idêntico monumento de barbárie. As fontes mítico-teológicas do direito são tão transparentes que nem precisaríamos da severa pesquisa de Foucault, Agamben e outros autores para decifrar seus mecanismos. A posição divina do juiz e sua lógica decisória impede qualquer tentativa de não encontrar ali pura teologia. As cerimônias degradantes dos rituais judiciários são confirmações da perpetuação desse mecanismo. A lógica decisória do direito é incapaz de sustentar um processo que queira ser justo ou democrático. Não existe direito -- e isso parece que até autores de ultradireita como Carl Schmitt ou mesmo Jakobs reconhecem -- sem uma violência constituinte que sustenta esse direito; justamente a violência do estado de exceção que é o que verdadeiramente comanda os movimentos dessa máquina. Aqueles que ainda ignoram esse aspecto permanecerão a vida inteira sem entender porque o direito à propriedade rural dos latifundiários é mais efetivo que o direito a um salário mínimo nos padrões constitucionais.
A violência mítica encobre a violência em que se funda, mantendo as estruturas intactas. Em vez disso, poderíamos imaginar uma violência divina que -- situando-se no esfera do puro Dizer -- fecha a porta do direito após a sua consumação e instaura a redenção dos restos da história.
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