Mox in the Sky with Diamonds

sábado, dezembro 12, 2009

(Para Ricardo Timm de Souza, que me mandou a imagem com o sugestivo nome de "democracia").

POLÍCIA PARA QUEM PRECISA

O que mais poderia surpreender os ficcionistas do Estado de Direito é a plena consciência que a polícia tem de a quem ela serve. Sem ter qualquer preocupação com direitos humanos ou qualquer outro limite que nossos juristas e filósofos políticos traçam com seus contornos igualitários, a polícia, numa risada festiva, sabe e confessa permanentemente que perante ela não existe autoridade senão aquela da qual emana o verdadeiro poder do Estado, ou seja, do estado de exceção. A polícia sabe perfeitamente - e nosso Coronel Mendes por aqui disse tantas vezes explicitamente - qual é sua real função dentro do Estado. Alheia às teorias juridicistas da igualdade perante a lei e da defesa dos bens jurídicos, seu alvo são sempre os mesmos e seu recolhimento envergonhado diante do poder é pornográfico. Mendes dizia aos moradores de rua: "vocês têm de entender que nós estamos aqui para limpar as ruas para a sociedade". Espancar estudantes que "trancam o trânsito" ou um governador corrupto? Ninguém tem a mínima dúvida de qual será a opção da polícia. Espancar um ladrão de galinhas ou um empresário que roubou milhões?
Não é à-toa que Benjamin - justamente aquele que identificou o estado de exceção como regra para os oprimidos -- afirmou ser a polícia justamente o locus preferencial onde esse poder se exerce. Jogada numa franja marginal entre a ilegalidade e a legalidade, a polícia é o local onde o Estado permite reagir diante do bandido (o banido da lei) por fora daquilo que a ordem jurídica assegura, suspendendo a lei sem tocar na sua vigência. Orwell narrou isso com perfeição com seus cães raivosos na "Revolução dos Bichos", mostrando no intervalo entre a letra da lei e o estado de exceção que sustenta essa letra onde está o real poder do Estado -- seu poder de vida e morte sobre os súditos que nem as matrizes mais revolucionárias puderam eliminar.
No Brasil, a polícia não está apenas na franja do estado de exceção; está dentro deste. A marginalização do policial é parte de um processo mais complexo que permite que gigantescas faixas da população estejam na extrema miséria, aquém de qualquer vínculo de cidadania, podendo ser eventualmente reprimidas - se necessário (crime) - por meio de um brutal violência que oscila entre agressões físicas, tortura, extermínio, sistema judicial precário até chegar a um sistema penitenciário que se confunde com uma verdadeira lixeira social. A polícia é jogada no mesmo esgoto, convivendo-se por isso com altas taxas de corrupção, preparo para a "guerra" e completa desumanização. Transforma-se assim o policial em um brutamonte incapaz de ser sensível a qualquer exigência que não seja a "ordem superior", tal como Eichmanns preparados para matar milhões sem sentir mais culpa do que a sensação de matar uma mosca. Os favelados, exterminados como piolhos, são todos os dias pés-de-página (quanto muito) de jornais sensacionalistas (para os destinados à elite não são "limpos" o suficiente) e fazem parte desse mecanismo que sustenta a real estrutura social brasileira, não aquela ficcional que aparece em "organizadas" teorias políticas e códigos jurídicos (inclusive a sagrada constituição).
O absurdo da polícia burra que agride manifestantes em homenagem a um cortejo triunfal que vocifera palavras como "cidadão de bem", "ordem pública" e "reação contra a baderna" é o espelho de uma estrutura de realidade em que o absurdo é o único real, e todo teoria que procura racionalizar isso só o faz no mais pleno e escorreito sentido freudiano do termo.

* Para quem deseja entender os policiais, recomendo a leitura de Kafka no conto sobre os chacais e os árabes.

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