Mox in the Sky with Diamonds

quarta-feira, setembro 16, 2009

SENTADOS SOBRE A MISÉRIA

ACHO INTERESSANTE quando se inicia o discurso moralista, cínico e ultrajante que vocifera ódio ou preconceito contra o MST. Não apenas vindo de reacionários insuportáveis como as tradicionais figuras do nosso jornalismo marrom, mas também jovens que acham todo palavratório do MST e, enfim, toda miséria brasileira, uma discussão simplesmente "uncool". Eu também não gosto de muitas coisas que o MST defende. No entanto, é impossível ficar do lado - e a política, infelizmente, está no mesmo patamar de não-neutralidade de todo o resto - de gente desprezível que acha que uma folha de papel que vem passando de mão em mão desde Dom Pedro I (ou antes) vale mais que a vida de pessoas - não raro feias, é verdade, e nem um pouco cools -- que morrem por não ter onde viver simplesmente.
Ora, é verdade que nem todos os integrantes do MST estão nessas exatas condições e igualmente que alguns acabam vendendo as terras que receberam para migrar para a cidade. Não se tome, no entanto, exceção pela regra. Assim como o Bolsa-Família não deixa de ter valor apenas porque tem meia dúzia se dizendo extremamente pobres e recebendo a "fortuna" do benefício, tampouco posso adotar essa visão evidentemente estigmatizante do miserável do campo que é literalmente desterrado - nascido exposto, banido desde o princípio, e simplesmente luta pela efetivação da justiça social. Deveria ele ler Jürgen Habermas e aguardar (com o "melhor argumento") até sua reivindicação conseguir vencer as "distorções" da esfera pública e, com isso, obter a legitimação democrática por meio do seu reconhecimento jurídico (legal ou judicial), respeitando, enquanto isso, o "direito fundamental de propriedade" alheio? Ou - pergunto eu - o desterrado deve mandar tudo isso à merda e simplesmente partir para a desobediência civil? Não é sua fome ou sua condição banida da própria terra que o coloca na posição de "melhor argumento"? Não é - ele próprio, enquanto ser de carne-e-osso - o "melhor argumento"?
Mas não é só isso. Há um tempo atrás conversava com um amigo do Achutti e ele me dizia - enquanto historiador - que um amigo pesquisava os títulos de propriedade aqui no RS e vinha descobrindo que tudo foi invadido. E não é a mesma situação dos proprietários - rectius: grileiros - que reclamam o "direito de propriedade" e a "soberania nacional" contra esses terríveis índios que agora se apossam de uma pequena fração do território brasileiro, se tomarmos em consideração que todo esse território era "deles", índios (eles, mais civilizados, não tinham essa pretensão de propriedade)? Quer dizer: o que é um simples fato de poder passa a uma esfera sagrada - como dizia a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão - da "propriedade privada", sendo por inviolável, como diz também nossa Constituição. E o Direito se dá o trabalho de legitimar toda essa estrutura, servindo de combustível para todos esses fósseis ambulantes da grande mídia destilarem seu ódio e sua raiva. E da oposição - representando parte das oligarquias nacionais - reivindicar uma CPI porque o Governo resolve dar dinheiro para subsistência desses movimentos sociais. Segundo eles, trata-se de uma guerrilha terrorista que visa a destruir os "homens de bem" do país, instaurando o comunismo. Antes fosse.
Não paremos por aí. Quem somos nós? Não estamos, por acaso, eternamente sentados sobre a injustiça? Não vivemos, por exemplo, legitimando estruturas de violência com o eterno argumento de que "não há outro meio"? Não será esse meio violento que adotamos uma forma de sustentação ou pelo menos minimização de uma violência original que existiu historicamente e hoje tentamos compensar (esquerda) ou conservar (direita)? Nossos sagrados direitos não são apenas fatos de poder naturalizados que nos fazem sentar sobre aqueles que estão desterrados, expostos, absolutamente jogados no mundo sem qualquer chance de redenção? Como permanecer "blasé", indiferente ou celebrador de tudo isso? Pode ser extremamente uncool, pode não soar "pós-moderno" ou lembrar "chavões de terceiro-mundista", mas não é inevitável reconhecer isso tudo? Quando nascemos em um país que chama de descobrimento um gigantesco processo de escravização, genocídio e grilagem como ficar com a "consciência limpa", aguardando que a Constituição Dirigente faça seu papel?
A realidade é que nós - eu e você, leitor, que pode ler esse texto - estamos cobertos de merda e sangue do início ao fim, sentados sobre os cadáveres dos que nos antecederam e foram vítimas desse processo cruel e violento. Que pelo menos não sejamos hipócritas. É um começo.

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