AS TUMULTUADAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E POLÍTICA
CONSTA QUE EVO MORALES conseguiu aprovar a promulgação de nova Constituição, com a concordância da população obtida mediante plebiscito. Não resta dúvidas que os conservadores irão atacar Evo chamando-o de golpista, autoritário, populista e destruidor das "instituições".
Não vou entrar no mérito da Constituição boliviana propriamente dita. O que vou aproveitar é o gancho para falar de como vejo hoje as relações entre direito e política, a partir do exemplo da Bolívia.
Podemos dizer que, desde o horizonte da Modernidade, mas mais propriamente no Iluminismo, ocorre um processo que poderíamos definir como "juridicização da política". Esse processo é muito mais profundo que outro - constatado por sociólogos como Boaventura de Souza Santos ou até pelo Lula - de uma "judicialização da política". A transformação de questões políticas em judiciais é apenas sintoma de uma estrutura mais profunda, que cuidadosamente foi cavada a partir do Iluminismo. Essa estrutura consiste na idéia de contrato social e império da lei - além de figuras anexas como a separação de poderes, a secularização, a isonomia e os direitos e liberdades civis. O iluminismo tinha como aposta um certo enclausuramento da política dentro do direito, fechando os experimentos políticos em nome da uma estabilidade institucional.
É fácil ver como essa é a forma mais defendida de poder nos nossos dias. O discurso da sacralização da Constituição é o seu produto - a tentativa mais radical de engessar a política no direito. A "Constituição Dirigente" é o projeto final da morte da política e hegemonia do direito - a ponto de se situar como aposta fundamental da esquerda social-democrata até pouco tempo. Há toda uma corrente de juristas brasileiros que apostam na Constituição como a pedra sacrossanta que irá nos guiar à redenção. Ao seu lado, filósofos como Habermas unem-se em torno do "projeto constitucional" como aquilo que livraria o Iluminismo - no qual ainda apostam - do seu "lado sombrio" [que o colonialismo ou a Shoah tão bem mostraram].
Por parte da direita política, trata-se do "império da lei", que vai traduzido, na prática, como "manutenção da ordem". Ao lado de imperativos econômicos de "liberdade de mercado", que conduziriam a uma "mão invisível" salvadora, essa "lei" deveria ser observada no seu sentido estrito e, com isso, preservadas as "instituições".
Essa forma metafísica de ver as relações entre direito e política não me interessa mais nem um pouco. Na verdade, ela apenas encobre as relações de poder que realmente existem. Na prática, por exemplo, a contrato social é apenas mais uma doutrina encobridora das relações entre Poder Soberano [que nada mais é do que a secularização de um conceito teológico] e a vida nua, como tão bem demonstrou Giorgio Agamben no seu já clássico estudo. O estado de exceção que mantém as coisas "no seu devido lugar", tudo de acordo com os arranjos múltiplos que se estabelecem a partir da "microfísica" do poder, é justificado a partir da ameaça hobbesiana do terrível "estado de natureza". Longe de uma mera fábula inocente, o suporte metafísico do contrato social - como não poderia deixar de ser a toda metafísica - é tremendamente violento, uma vez que supõe um mito fundador que legitima a violência injusta com base numa lei sacralizada.
As instituições existem como produto da política, mas jamais podem ser sacralizadas. Sacralizá-las significa reproduzir a violência teológica que a secularização pretensamente teria eliminado. A Constituição existe enquanto experimento político; nada mais que isso. Não deve ser objeto de veneração nem de idolatria. Deve ser, ao contrário, profanada - ou seja, restituída ao uso comum.
Quando os conservadores atacam Evo por destruir as "instituições" estão, na realidade, requerendo a manutenção da estruturas simbólicas absolutamente contingentes, mas que são fundamentais para manter aquilo que é o essencial para esses conservadores: as estruturas de poder. O juristas mais profano de todos, aquele cujo ostracismo é provocado pelo silenciamento do discurso sagrado da Constituição, Ferdinand La Salle, afirmou que a verdadeira Constituição são os fatores reais de poder. É a essas "instituições" que se referem os conservadores quando atacam Evo. Pois, afinal, o que são as instituições senão criações contingentes que podem ser revisadas por não serem fins em si mesmas? E, elaborada uma nova Constituição, não são as instituições que defende Evo? Os conservadores querem que apenas algumas instituições sejam instituições; e outras nem tanto.
Digo isso apenas para fazer um "elogio da profanação" da Bolívia; sem, no entanto, me comprometer com qualquer das idéias concretas postas ali por Evo. O que não aceito é o enclausuramente metafísico que o direito põe a política, sem, na prática, perceber que o próprio direito é guiado pela "microfísica" do poder.
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