Mox in the Sky with Diamonds

segunda-feira, outubro 20, 2008

LIBERALISMO E LIBERALISMO

UMA COISA QUE SEMPRE me incomoda, e quem é leitor desse blog há tempos sabe disso, é a banalização da palavra "neoliberalismo". Usada como jargão-clichê por uma esquerda anacrônica, de um lado, e como "fim da história", por outro, é isso que está desabando diante dos nossos olhos na crise econômica. Mas o que incomoda, sobretudo, é ver gente como Reinaldo Azevedo dizendo que é "um liberal" (e pior, gente do campo oposto concordando). Cruz credo.
As sociedades norte-americana e européia (especialmente a Grã-Bretanha, aqui) haviam consolidado, desde o New Deal e o Plano Marshall, um Estado "grande", apelidado de Welfare nos EUA ou simplesmente de "Bem-Estar Social". Foi a partir da crise econômica do Choque do Petróleo (1973) que as instituições desse "grande Estado" começaram a ser derrubadas.
Aqui já vemos o primeiro equívoco: ao contrário do que o pittbull neocon defende, o neoliberalismo não surgiu em choque com o comunismo, mas sim com o welfarismo, ou seja, a social-democracia. Seu inimigo não era Karl Marx, e sim Keynes ou até Dewey. A idéia era de que os altos impostos que custeavam os serviços públicos deveriam ser devolvidos para a sociedade e o livre-mercado daria conta dos problemas. Por isso, "neoliberalismo".
Não gosto do termo. Liberalismo, para mim, tem o sentido norte-americano: é a corrente de gente perspicaz como Richard Rorty, John Rawls, Ronald Dworkin e Arthur Danto, ou dos movimentos de direitos civis de mulheres, negros e homossexuais. Seu parentesco mais próximo é com a social-democracia de Habermas, na Europa, ou até de Laclau ou Chantal Mouffe. É uma corrente inspirada em gente como Dewey e Tocqueville. O liberal é aquele pragmático meio "blasé", meio irônico, um tipo meio voltairiano que vê com bons olhos reformas sociais e aposta radicalmente na democracia contra todo autoritarismo. Reinaldo Azevedo certamente não se enquadra no rótulo. Ele e sua revista estão muito próximos -- isso sim -- do neoconservadorismo de George W. Bush, Ronald Reagan e Charles Murray.
Por essa razão não gosto de "neoliberalismo" -- ofende os bons liberais. Gostaria de dizer apenas "neoconservadorismo" para falar dessa tendência hegemônica que combina liberdade de mercado (na realidade, apenas uma forma de tornar os ricos mais ricos) e conservadorismo moral. Mas acho que não dá. Isso porque, além desse emaranhado "neocon" que Sarah Palin tão bem representa (e que se contrapõe a Maio de 68), essa política veio combinada com outros elementos. Vamos ver alguns.
A "ideologia do sucesso" (*) é um deles. Trata-se de um emaranhado que combina discursos de administração ("motivação", "competição", "gestão" etc.), filosofia new age (orientalismo e busca da "paz interior" como amortecimento), consumismo (como meta) e narcisismo (figura da "performance") e produz pessoas como aquelas personagens mulheres de filmes como "Era da Inocência" e "Beleza Americana", ou homens como o pai da menina em "Pequena Miss Sunshine" ou o "Psicopata Americano". Figuras que poderiam remeter a gente como Donald Trump ou Roberto Justus e livros como "O Sucesso é ser Feliz" ou qualquer um do Lair Ribeiro. Essa ideologia tem papel fundamental na contemporaneidade, ocupando largo espaço social, e seu impacto se dá sobretudo sobre o meio empresarial e todo seu emaranhado administrativo.
De outro lado, como complemento, temos a "ideologia atuarial", que está na outra ponta - a analítica (aqui, pouco a ver com filosofia analítica). Trata-se de uma metodologia que reduz tudo a cálculos econômicos de estatística, ignorando os problemas humanos e culturais que subjazem às questões. As pessoas são reduzidas a indivíduos calculadores e custo/benefício e o restante é reduzido a "subjetivismo" e sai da "melhor gestão". Essa área atuarial vai da educação à criminologia, passando por direito, sociologia e outras disciplinas.
Ambas áreas convergem para um fenômeno: a burocratização da sociedade. A prevalência discursiva da administração ("choque de gestão") e da economia (contra o Estado "gastador") indicam uma sociedade "administrada", como anteviam os frankfurtianos e, de certa forma, se confirma a previsão. Essa burocratização, que acompanha o neoconservadorismo, é o cerne do "neoliberalismo", que muito pouco tem de parecido com o liberalismo de Beccaria, Verri, Tocqueville e Dewey (no âmbito jurídico, chamaríamos esse último de "garantismo"). A corrente "atuarial" pretende ser "neutra" e vê com muitas ressalvas qualquer interferência de "políticos" (dela vem o chamado "choque de gestão"). É apenas mais uma máscara para deixar os ricos mais ricos (a partir, sobretudo, da especulação econômica) e "gerir" os problemas sociais por meio de fórmulas que ignoram (propositalmente) a respectiva complexidade.
Felizmente, aquilo que víamos como "globalização" (a absoluta flexibilidade do mercados financeiros) parece estar entrando em outro patamar (de regulação) e poderemos domesticar o capitalismo selvagem que vivemos (coisa que gente como Bauman e Habermas alertavam há anos). Antigamente, chamávamos esse espaço de "política"...

(*) Ideologia, aqui, tem o sentido fraco de "conjunto de idéias".

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