Mox in the Sky with Diamonds

segunda-feira, julho 28, 2008

LIVROS DAS FÉRIAS

As férias são um período em que dá para se reciclar nas leituras. Me dediquei a algumas nesse período. Destaco alguns:

CACO BARCELLOS, "ROTA 66"
Confesso que o fato de Caco ser repórter da Globo me gerava injusto preconceito. "Rota 66" é um intenso e seríssimo trabalho de pesquisa e investigação em torno da Polícia Militar de São Paulo, detalhando seus métodos de extermínio, as técnicas de encobrir os delitos e o amplo aplauso social à violência policial. Esse ignorância se perpetua até os dias de hoje, com boçais aplaudindo "Tropa de Elite" nas salas de cinema (e até de aula, acreditem) sem descobrir que um Estado com o mínimo de decência não pode tolerar violência policial em qualquer nível, quiçá no de verdadeira exterminadora de pobres e negros.
O relato é às vezes um pouco parcial e explora pouco as causas dessa violência, mas funciona muito bem como denúncia e investigação da situação da polícia. Ontem mesmo, lendo meu último "O Globo" comprado antes de vir embora, ali dizia que a polícia carioca prende sete vez menos em comparação com o aumento de "autos de resistência" (freqüentemente um eufemismo ofensivo), além de se utilizar do método de encobrir homicídios levando o "ferido" (na realidade, cadáver) ao hospital para destruir a cena do crime.
Infelizmente, o "cidadão de bem" (o conservador da classe média) aplaude o extermínio como, aliás, já fizera décadas atrás, no outro lado do Oceano. A mesma mediocridade de sempre, mas é mais fácil achar que os alemães é que eram um povo malvado.

MARQUÊS DE SADE, "FILOSOFIA NA ALCOVA" E "CRIMES DO AMOR" / OCTÁVIO PAZ, "UM MAIS ALÉM DO ERÓTICO: SADE"
Todos textos que, instigado pelo excepcional "Anti-manual de Criminologia" do Salo de Carvalho, me pus a ler. Tirei conclusões um pouco diferentes, no entanto.
Se a violência para Nietzsche e Freud é inerente ao humano, se temos nosso lado "dionisíaco", nosso "Id" ou nossa "sombra", é porque essa ambivalência nos constitui enquanto tais, como espécie de reverso do nosso lado consciente ou "apolíneo". Em Sade, as coisas me parecem diferentes. Especialmente na "Filosofia na Alcova", a violência é estruturada em demandas racionais, tornando-se inumana porque "fria", calculada e programada. O homem sadiano é, assim, não um libertino que explode de prazer e não contém seu narcisismo, mas alguém que goza sem gozar, parece querer anular-se e retornar a um estado "mineral", "bruto", escapando da doença civilizatória. Paradoxalmente, é por argumentos -- todos frágeis -- que Sade concebe a derrocada civilizatória.
É fundamental, nesse sentido, entender que o homem do Sade é díptico, e não se constitui senão pela vítima -- pela anulação do Outro -- que é destroçado e transformado em objeto de prazer e mutilação. Sozinho, esse homem nada significa. É pelo registro da alteridade destroçada que ele se constitui.
Sade, portanto, é um antecipador dos campos de concentração, como os frankfurtianos perceberam bem. A razão junta-se com a crueldade e torna a violência inumana, formando aquilo que transborda do lado "sombra" do homem e representa o mal: o terror.
O livro de Octávio Paz é genial em perceber a duplicidade do discurso sadiano, sua racionalidade, a frieza do libertino e uma espécie de retorno ao bruto, em forma de uma "Natureza" que desempenha um papel de teologia do mal. Por fim, "Crimes do Amor", contos que nada têm em comum com o Sade usual, é literatura menor, influenciada por "Vathek", de Beckford, e a literatura oriental em geral, resvalando em um romantismo às vezes cômico.

DALTON TREVISAN, "A GORDA DO TIKI BAR" E "O GRANDE DEFLORADOR"
Sou devedor da literatura brasileira da segunda metade do século XX, pouco conhecendo de autores importantes como Caio Fernando Abreu, Dalton Trevisan, Ruben Fonseca e até mesmo (essa conheço um pouco mais...) Clarice Lispector.
Por isso, comprei esses dois livrinhos de contos deliciosos -- embora trágicos -- de Dalton. Sua linguagem dura impõe nada mais que o real, como um tapa na cara por vezes tão forte que nos cega. Porque às vezes é simplesmente isso mesmo: a realidade é tão brutal que não se deixa representar; só a arte, nua e crua, é capaz de nos mostrar algo.

J.M. COETZEE, "À ESPERA DOS BÁRBAROS"
Livro FANTÁSTICO do escritor sul-africano J. M. Coetzee, que trabalha com uma ficção que muito diz de como compreendemos o "Outro" a partir da metáfora do império e os bárbaros. Livro de uma inquietação ética manifesta, capaz de confrontar a Totalidade com a Justiça, com aquilo que rompe a lógica e nega-se a reduzir ao "Império": o Outro.
Simplesmente imperdível.

CONTARDO CALLIGARIS, "A QUINTA COLUNA"
Volume que compila 101 crônicas de Contardo na Folha de São Paulo, apenas confirma o seu status de um dos mais importantes intelectuais do Brasil. Com seu texto leve, mas absolutamente profundo, sua inquietação pela diferença e comprometimento com o acolhimento, Contardo mostra-se um militante da compreensão e do diálogo, quebrando a casca narcísica que cobre o sujeito contemporâneo.
Apesar de ter lido grande parte das crônicas no jornal na época, a releitura foi deliciosa, esbanjando erudição, perspicácia, simplicidade e clareza.

JURANDIR FREIRE COSTA, "VIOLÊNCIA E PSICANÁLISE"
Forte coletânea de Jurandir Freire Costa, que é com certeza é outro dos mais importantes intelectuais nacionais. Jurandir, apesar de psicanalista, transita com facilidade entre os diversos referenciais filosóficos, com especial ênfase naquela que parece ser sua maior referência: Hannah Arendt.
No primeiro texto, em que pretende delimitar o conceito de violência, embora compreenda seu esforço pela desbanalização da palavra, acredito que tropeça um pouco ao restringir em demasia e acabar vinculando a violência a uma espécie de "má-fé", quando, a meu ver, a violência às vezes ocorre com a melhor das intenções (o caso de muitos padres e religiosos me parece exatamente esse; de outros, nem tanto...).
Ao ler um dos seus últimos textos, "Violência e Transcendência" (2007), posterior a esse volume, vejo que seu conceito se ampliou e provavelmente, pelo que noto no texto, Levinas deve ter sido um autor decisivo para essa mudança, embora seja Hannah Arendt, mais uma vez, o referencial preferido do autor para situar o problema.
Antes de terminar: o artigo que trata da violência racista deveria ser lido por todos os detratores das cotas RACIAIS, para entender exatamente o que está em jogo. É dilacerante.

JOSEF CONRAD, "CORAÇÃO DAS TREVAS"
Mais uma reflexão, no contexto do colonialismo europeu na África, da questão da alteridade e da totalidade. O suposto "projeto civilizatório" europeu levava consigo tremenda violência, representada nas últimas palavras de um personagem central da narrativa: "horror, horror".
Essas palavras são a síntese de todos os temas que estudei durante esse pequeno interlúdio entre o primeiro e segundo semestre, todas temáticas que mostram a violência como estrutura que muitas vezes se mescla e "acinzenta", passando-se por racional.
Quem subestima essa questão jamais toca o ponto central, a raiz, sendo por isso a insistência de autores que tanto me influenciam como Agamben, Timm, Levinas, Derrida, Benjamin, Adorno e outros de que todas as discussões que se passam na superfície do tema deixam o essencial de lado.

Como antídoto a tudo isso, fiquei com vontade de reler "Para além da crueldade", livro em que Derrida magistralmente faz a "ordem da crueldade" da psicanálise transbordar para a transcendência da hospitalidade, do perdão, do dom e - eu acrescentaria, com base no próprio Derrida - da justiça.
Termino, antes do retorno às aulas, "Venenos de Deus, Remédios do Diabo", de Mia Couto, e "O lado obscuro de nós mesmos", de Elisabeth Roudinesco.

Marcadores: , , ,