Mox in the Sky with Diamonds

segunda-feira, outubro 05, 2009

A ESTERILIDADE DO DEBATE JURÍDICO CONTEMPORÂNEO

A FRASE QUE ANTECEDEU esse post trabalhou com ironia a "força normativa" da Constituição. Chama atenção como os juristas continuam repetindo, apesar de todos os fatos dizerem o contrário, que Hesse derrubou Lasalle, argumentando que a Constituição enquanto os "fatores reais de poder" cedeu lugar à "força normativa" constituinte. Tal afirmação não é apenas falsa -- basta ver a dúbia posição atual de um dos principais "mestres" da constitucionalismo contemporâneo, JJ Gomes Canotilho --, como revela certa patologia narcisista dos juristas insistindo na denegação. Aliás, Salo de Carvalho, há pouco tempo, escreveu magistral artigo trabalhando a "ferida narcísica do direito penal", evidenciando os projetos irreais da dogmática criminalista nos seus projetos de salvar o mundo. Minha única anotação sobre o tema é que estaríamos diante de um quadro ainda mais grave em se tratando da dogmática constitucional, que é ainda mais narcisista e incapaz de enxergar seus limites claros que a realidade (essa, de quem o constitucionalista não gosta) não cansa de definir.
Mas o que eu gostaria de salientar aqui é a crescente esterilidade das discussões jurídicas, incapazes de observar um palmo à sua frente. Os juristas realmente acreditam que houve um salto sobre o Positivismo Jurídico com o constitucionalismo, como se Kelsen, por exemplo, não tivesse afirmado desde sempre a estrutura piramidal da ordem jurídica que põe a Constituição como norma suprema. Assim, acredita-se ter havido uma "grande transformação" da "legalidade" para a "constitucionalidade", como se tudo não fosse simplesmente o mesmo fenômeno derivado da mesma teoria. Basta ler Kelsen para ver que se trata de um tremendo constitucionalista. Fala-se como se tivesse havido uma mudança jurídico-estrutural com as Constituições, quando o que houve foi apenas a mudança política de uma ordem liberal não-intervencionista ou uma ordem totalitária para um certo acordo social-democrata que permanece ainda em vigor na Europa, dividindo os líderes das "alianças" e neutralizando as polarizações, por exemplo.
Tem-se até uma bizarra classificação em "Estado Liberal", "Estado Social" e "Estado de Democrático de Direito", quando qualquer filósofo sabe que os dois primeiros podem ter sido "democráticos" e "de direito", ou seja, a distinção não faz qualquer sentido. (Essa juridicização do Estado de Bem-Estar alcança níveis tão patológicos dentro da dogmática constitucional que por vezes alguns juristas -- em delírio narcísico nível 10 -- acreditam que a Constituição-Welfare substitui a própria política, existindo apenas um caminho a seguir.)
O caso Honduras é espelho claro dessa esterilidade. Tudo que se vem discutindo a respeito é se Zelaya cumpriu ou descumpriu a Constituição. As opiniões variam, normalmente segundo o rumo ideológico do analista. Porém ninguém pergunta se é justo ou politicamente adequado que uma Constituição preveja como cláusula pétrea a impossibilidade de que o governante proponha uma reeleição, prevendo sanções severíssimas e nitidamente desproporcionais para o caso. Os juristas -- e com eles muitos analistas de todos os campos -- não conseguem mais transcender a Constituição, pensar em algo fora da Constituição, julgar a própria Constituição. Sei que estou sempre insistindo nesse ponto, mas vá lá: a Constituição foi tornada um objeto sagrado, imutável, separado dos viventes, como se não fosse produto de seres humanos em um determinado momento histórico que contingencialmente optaram por determinado modelo político. A Constituição está sempre certa?
Nossa idolatrada Constituição de 88, por exemplo, está de acordo com uma política repressivista de drogas, faz apologia da "família" e dá um tratamento desigual para funcionários públicos. É produto de um arranjo político contingente e bastante criticável. Nada a ver com o programa sagrado e "dirigente" -- o Bem supremo -- que alguns gostariam de transformar. A intangibilidade da Constituição é o dogma mais sagrado do constitucionalismo contemporâneo. Como todo dogma, bloqueia o pensamento e impossibilita o Novo. Transforma todo direito contemporâneo em um sistema autopoiético, ou seja, tautológico, auto-legitimante ou, como gosta de dizer o Pandolfo, "auto-venerador".
É tão evidente a bizarrice de uma norma pétrea que impossibilita a proposta de reeleição que a ausência de discussão sobre isso assusta. A armadilha que caímos é ter que ouvir os arautos da direita afirmarem: "o MST é inconstitucional, pois não respeita o direito de propriedade". Aliás, sobre o tema deixo mais duas observações:

(1) apesar de Habermas ser parcialmente responsável por tudo isso (com o "constitucionalismo patriótico"), devo reconhecer que o alemão pelo menos identificou o problema, tentando resolvê-lo com a "democracia procedimental", ou seja, retirando esse peso material excessivo da Constituição nas gerações futuras. Só que, com isso, ele perdeu na outra ponta o suporte material necessário para que os falantes possam "deliberar";
(2) tudo que me irritava no Direito e eu não sabia expressar até conhecer Ricardo Timm de Souza e retomar o tema da justiça no Mestrado é a absoluta indiferença do curso de Direito -- no seu delírio autopoiético da Constituição -- pelo tema da justiça. Justiça é uma palavra raríssima no vocabulário jurídico e normalmente quando instado a falar sobre ela o jurista responde algo como: "isso não é comigo".

Marcadores: , ,