Muito interessante Salo, principalmente pelo sentido do que o autor coloca como perspectiva anarquista de ruptura com a autoridade. Me parece que isso possibilita um combate discursivo de dupla via: se por um lado é possível construir um discurso contra aquele empreendedor moral de proposições punitivas institucionais, por outro lado possibilita o combate discursivo contra aquele outro empreendedor não menos violento que é o teórico criticista do que não entende. Como exemplo: grande parte da contracultura que tem me interessado hoje em dia é rotulada como alienada, como se isto fosse um problema, quando a geração da alienação não apenas é contemporânea das gerações existencialistas e anarquistas como hoje em dia é quase uma sedimentação mista destes movimentos.
Pra cada resmungo crítico acerca de um grupo fútil contemporâneo acaba aparecendo um olhar mostrando que a alienação na maioria das vezes não é do grupo, mas do próprio pesquisador. A Pós-modernidade é uma fábrica de Labellings.
quinta-feira, junho 25, 2009
FOUCAULT X MAFFESOLI - AS "CONTRACULTURAS" E A POLÍTICA
VOLTAMOS. Vou aproveitar a oportunidade para abordar um tema que estamos discutindo há tempos e tentar incendiar ainda mais a discussão. Para isso, vou aproveitar o gancho de um comentário do Zé no blog do Salo que pretendo desconstruir. O Salo nos dá uma pitada do seu artigo sobre a "Cultural Criminology" e o Zé comenta:
Não fosse o comentário do Zé fantástico (sem falsa retórica), não valeria a pena comentar (e também porque acho que, bem ou mal, divergindo em algumas coisas, eu e o Zé queremos chegar no mesmo lugar). Por isso ele vai ganhar dois posts, tratando da questão sob dois ângulos diferentes. O primeiro é menos tenso; o segundo será mais duro (com a temática). Vamos ao trabalho.
Primeiro, me afasto completamente de qualquer perspectiva marxista clássica que trabalhe com o conceito de "alienação" dessa forma. Parece que essa crítica -- da forma mais crua como apresentada -- é privilégio de uns velhinhos que não entenderam a importância de 68 e nem de uma série de autores da segunda metade do século XX. Não parece ser o meu caso.
Vou criticar o comentário do Zé a partir da tensão entre dois autores que acredito serem essenciais na discussão (dois "Michels"): Michel Foucault e Michel Maffesoli. Começando pelo segundo.
Faz tempo que li pela primeira vez Maffesoli. E me lembro que me impressionou muito. A primeira vez foi num livrinho bem curto, relato de conferências, em que ele debate a existência da pós-modernidade com Sérgio Rouanet. Maffesoli sustentava que vivemos um período "pós"-modernidade, com valores distintos, etc. (com o que eu concordava); enquanto Rouanet sustentava que o que vivíamos era o mesmo que os medievais viveram na transição da Alta para Baixa Idade Média (--Nunca imaginei que terminaria concordando com Rouanet--). Depois, peguei pelo menos dois livros de Maffesoli - que me lembre - e os devorei: "A Contemplação do Mundo" e "O Tempo das Tribos".
O que sustenta ele nesses livros, em síntese brutal, é que a pós-modernidade se caracteriza pela formação de arranjos múltiplos entre pessoas, sem fixação de uma identidade, reunindo não a partir de contratos, mas de laços emocionais ("nebulosa afetual"). Maffesoli copia de Durkheim a idéia de "religião" (re-ligare) para afirmar que esse "estar-junto" gera espécie de "proxemia sentimental" pela qual os indivíduos fazem redes afetivas entre si, formando as "tribos". Não bastasse isso, Maffesoli também afirma que esses vínculos "subterrâneos" não podem ser confundidos com os vínculos de cidadania típicos do Estado, formando uma espécie de "potência" que se opõe ao "poder". Portanto todos esses novos vínculos -- "subestimados" pela sociologia crítica herdeira da Escola de Frankfurt (e alvo preferencial de parte da sociologia francesa) -- teriam essa capacidade de oposição ao "poder", de formadores de "potência", ligados pelo vínculos emocionais que formam o "cimento" da sociedade de massas pós-moderna, claramente oposta ao "individualismo" moderno.
Todo esse sofisticado discurso parece absolutamente ingênuo para um leitor do outro Michel, o Foucault. O mestre francês já havia identificado há muito tempo que o poder não emana de um centro. Poder não é uma "substância" que alguém detém. Contra Althusser e toda tradição marxista, Foucault sustenta que o poder é uma relação que se distende por todo tecido social, e não um conjunto de prerrogativas do Estado, como sustenta a visão jurídica da Teoria do Estado que os marxistas aceitaram sem crítica. Ou seja, a própria sociedade -- que não é senão uma relação (Norbert Elias ensina isso melhor que ninguém, não há sociedade "lá fora") -- é formada, constituída, por relações de poder. As relações de poder não são um adorno, detalhe, acidente ou enfeite; são a própria "matéria" com a qual se forma o tecido social.
Por que é então "ingênua" a perspectiva de Maffesoli? Porque ele ainda pressupõe o "poder" como algo do Estado. Mas o poder não é só do Estado. As relações entre as pessoas podem ser poder. Esse "estar-junto" não é neutro. Está contaminado pelas questões de poder desde o início. Ou seja: esse "estar-junto" (o próprio Maffesoli reconhece) pode ser um "estar-junto" fascista, por exemplo. Para ficar em um caso abordado pelo próprio Maffesoli (em "A Contemplação do Mundo"): a televisão, a imagem, produz a "proxemia sentimental", reafirma os laços sociais, forma "potência". Mas que potência? Um "Linha Direta" provoca uma tremenda intensidade sentimental, mas com resultados fascistas e histéricos. Mas é inegável que provoca o "estar-junto". Basta pensar, ainda, nas chamadas "festas da ordem" (ex. as "festas cívicas") que DaMatta analisa, muitas vezes apenas celebrações da violência e da ordem.
O que interessa ao foucauldiano não é apenas o estar-junto da "potência" contraposto ao "poder" (que pode chegar na imbecilidade do "Cansei"), mas que não existe estar-junto que não envolva poder e, por isso, política. Todo estar-junto é relação e, por isso, trata do poder, que é a própria relação (melhor: uma forma de relação). Interessa menos ao leitor de Foucault o quanto esses movimentos se opõem ao Estado do que o quanto eles próprios são relações de poder, e como se relacionam enquanto relações de poder. Para um adepto de Foucault não existe ingenuidade maior do que afirmar, como afirma Maffesoli, que a "política está declínio", sendo substituída por esses novos estar-juntos. Não há como evitar a política porque ela sempre estará presente enquanto existir o poder. O próprio termo "micropolítica" -- geralmente com entusiasmo pelos rivais da "política tradicional" -- não está sendo lido com rigor (que eu saiba, os grandes defensores foram Deleuze e Guattari, dois entusiasmados leitores de Foucault): micropolítica. Fica-se demais no micro e não se pega o essencial da luta de Gilles Deleuze e Félix Guattari (autores seminais na minha formação): é preciso estender a política também para o âmbito micro, e não se despolitizar. Aquilo que antes não era objeto da política (da "grande política" tradicional, do Estado) agora passa a ser.
Hoje o trabalho de Foucault é complementado pela genial contribuição de Giorgio Agamben (que também já até escreveu obra conjunta com Deleuze), que parece pegar o centro da questão ao dividir os movimentos em "sacralizadores" e "profanadores". O movimento de "sacralização" (religião, para Agamben, vem de re-legere, tem relação com "separação", e não "ligação") separa os comportamentos em uma esfera separada, tornando-os indisponíveis aos viventes. O de profanação restitui o sagrado ao vivente, possibilitando o uso, o jogo e a brincadeira. É uma forma de julgar politicamente para que lado caminha cada comportamento social. Agamben não é defensor da volta à "grande política", da "saída da alienação", mas da inseparabilidade entre o macro e o micro, das relações de poder que se formam a partir de cada comportamento social. A meu ver, é nesse jogo da sacralização/profanação que devem ser analisados os comportamentos sociais em termos políticos, inclusive os contraculturais. O que os foucauldianos -- como eu -- jamais poderiam aceitar é a aceitação pura e simples de qualquer comportamento como "apolítico". A política também está nas pequenas coisas.
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