VAZIO, CHEIO OU CHEIO DE VAZIO?
UMA DAS COISAS BOAS de ter amigos inteligentes é poder discutir sem que as partes saiam abaladas da discussão. Aliás, qualquer academia séria deveria funcionar dessa forma: debates são não apenas normais, mas absolutamente fundamentais para que as questões cresçam em volume e complexidade. Infelizmente, apenas engatinhamos nessa tradição.
"Sopa de Moscas" e "Cartas de um Louco" são blogs vizinhos e travam uma discussão fundamental. Não creio que tenha a resposta final - e a discussão instiga justamente por ser de difícil solução - acerca da interpretação de contemporaneidade.
Vivemos a "era do vazio"? Autores distintos como Maffesoli e Bauman parecem concordar a respeito, mas as conclusões que tiram disso são opostas. Enquanto o primeiro "festeja", o segundo vê tudo com restrições e críticas.
Hoje em dia, estou mais próximo de Bauman. Autores como Agamben, Adorno e Levinas têm me tornado bastante crítico em relação à subjetividade contemporânea. Creio que, para usar expressão benjaminiana que Agamben se apropria, vivemos a era da "destruição da experiência". A experiência só pode ser experiência da diferença, senão é mera repetição. Viver significa experimentar nesse sentido; quer dizer, se deixar traumatizar pela alteridade. Um trauma que, no entanto, não é negativo: é essa experiência que nos constitui, que nos permite ir adiante, que nos "alimenta".
O homem pós-moderno parece não "experimentar" mais. Narcisismo e espetáculo, como constata Joel Birman, são ingredientes que impossibilitam a experiência da alteridade. O espetáculo transforma a representação em vida, fazendo-a hiper-real. Como o conto de Borges que Baudrillard certa vez cita: um dia um rei quis fazer um mapa tão perfeito que acabou cobrindo todo território. Ficamos apenas com o mapa. Admiramos as mulheres das revistas, mas sabemos que são "fabricadas" por photoshop. Então as moças deixam de comer para imitar o espetáculo (photoshop), até fazê-lo hiper-real. Olhamos Big Brother e acreditamos que aquilo é a "vida real", ainda que saibamos que não é. E, no fim das contas, nos esforçamos para transformar a realidade em BBB. A representação se realizou e tomou o lugar da vida.
De outra parte, vidros escuros e carros blindados fazem o narciso ignorar qualquer coisa que se interponha ao próprio gozo, perdendo a sensibilidade com a vida real. Vive em um mundo infantil em que a superfície especular do olhar do Outro é a única coisa que preenche seu "vazio" interior. Como uma estátua de vidro, absolutamente transparente e plenamente vazia, "cheia de vazio", vivendo exclusivamente em exibir-se como espetáculo. Se o gozo é interrompido, uma droguinha (lícita ou ilícita) resolve.
Tudo isso se funde na idéia de "performance": o sujeito se torna superfície do espetáculo a partir de metas narcisistas. É a figura do burocrata contemporâneo, incapaz de sentir a alteridade dos colegas de trabalho, flexível e new age, cheio de "motivação" e sugado por um binômio de trabalho/consumo. Ou ainda da "celebridade", uma espécie de exibição do nosso supremo vazio em carne-e-osso, que não tem nada a oferecer a não ser o "espetáculo", é um "nada" ambulante e festejado.
Perdemos a capacidade de "brincar", como afirma Agamben, pois além de narcisos espetaculares não sabemos sequer usar nossos brinquedos (carros, celulares, etc.), uma vez que o mundo do espetáculo é o mundo do "museu", onde as coisas são exibidas enquanto plataformas de "sucesso" e não mais usadas como brinquedos. A figura mais representativa do nosso tempo é o "turista", que, como bem ironiza o filme "A Praia" (do ótimo de Danny Boyle), quer ir viajar mas ficar no exato mesmo lugar, observando a cidade que visita como museu (incapaz da "experiência" de viajar).
Hoje abro o jornal é vejo duas notícias: 89% dos professores da rede escolar de SP foram agredidos por alunos, três jovens estupram menina, filmam e colocam na Internet. Como não enxergar os efeitos deletérios desse vazio? Estão "repletos de vazio", e ele produz algo. Uma cultura narcisista que não convive com a diferença e que impõe o gozo como imperativo. Uma cultura incapaz de dizer o que é o bem, como vem advertindo Jurandir Freire Costa. Ninguém deseja dar razão aos neocons da "tradição" e voltar atrás na história, mas sim estabelecer novos parâmetros. O vazio vem produzindo seus efeitos. É um vazio que "enche". Mas a sua substância é tão fria, transparente e frágil quanto o vidro. Pode existir algo mais gélido, frágil e perigoso que uma cidade de vidro?