O LIXO
Na famosa polêmica sobre os moradores de rua na Capital, o Cel. Mendes afirmou que todo "lixo social" cai nas mãos da Brigada Militar. Mendes foi hostilizado pela sua frase. Penso que, conhecendo a visão do coronel sobre o assunto, ele mereça parte da hostilidade. Mas pelo menos tem o mérito de não ter sido hipócrita.
A verdade é que existe uma escala da qualidade da vida. Determinados indivíduos são "super" ou "sobre"-cidadãos [a lei não atinge, está acima], outros simplesmente cidadãos [classe média] e outros são "sub"cidadãos [a lei não atinge, está abaixo]. Não é à-toa que a classe média gaúcha, leitora de ZH, usa o jargão-clichê do "cidadão de bem". No Brasil, é apenas essa parcela que está na linha da cidadania.
Motivações que me escapam me fizeram interessar por esses "subcidadãos". Essa "vida nua", que fala Giorgio Agamben, esses que são descartáveis, que não têm o direito a ter direitos, que não são "homens" [no sentido liberal do termo, do modo que falava Foucault]. Esses "não seres" são os varridos para baixo do tapete, o lixo que deixamos de fora dos nossos cálculos.
Foi por estudar eles, esses que ficam de fora, que perdi a crença no garantismo e na Constituição em geral. O Direito não chega nesse nível, não resolve, eles não são "humanos" para usufruírem os direitos humanos. Nessa fronteira, minha crença no Direito é nula. Esse limite, onde se exerce o "estado de exceção", é algo que me fez transbordar do simples discurso dos direitos fundamentais.
Escrevo isso pensando no caso das carroças. Li em um blog horroroso "os deputados que votaram contra a remoção dos carroceiros que atrapalham a vida do porto-alegrense". Qualidade da vida: os carroceiros não são "porto-alegrenses". Eles são "outra coisa". A vida deles é qualitativamente diferente, vale menos.
Reconhecer a hierarquia da vida é admitir que, ao lado do Direito, temos também poder. E esse poder se articula, se modula de acordo com a hierarquia da vida. É esse nível biopolítico que me interessa. É nesse nível que o Direito não chega. Esse "resto", esse "lixo" social está fora do Direito. Não tem ainda direito aos direitos. Quando você lê alguém falando de "cidadão", leia conjuntamente o "não-cidadão" -- esse lixo -- excluído.
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