CRIMINOLOGIA, ESSA DESCONHECIDA
É incrível como, apesar da chamada "explosão de violência" no Brasil nos últimos anos, poucas pessoas se dedicam a estudar Criminologia. Há muitos "especialistas" vindos do Direito Penal que desconhecem quem foi Howard Becker ou Erwin Goffman, mas acham que sabem tudo porque estudaram normas penais. Sem falar dos "especialistas" da mídia, que não sabem nada mesmo, via de regra [as colunas da Alba Zaluar na FSP e do Marcos Rolim na ZH são exceções honrosas e imperdíveis].
Odeio essas discussões de blogueiros em que os debatedores ficam se batendo para ver "quem sabe mais" ou "quem é a maior autoridade". Mas, nesse caso, parece que falta um ingrediente básico na discussão, que está bem à mão de todos.
Refiro-me às pesquisas que serão realizadas por neurobiólogos testando cérebro de adolescentes, que comentei por aqui na época do surgimento da idéia. Surgiu, agora, um manifesto assinado por mais de 150 pessoas em que se contesta a pesquisa. Vários ótimos blogs já comentaram a questão [Fabs, O Biscoito, Hermenauta e outros].
Vou copiar um trecho de um artigo meu [que se chama "O Caso Pierre Rivière revisitado por uma Criminologia da Alteridade"], no qual tento explicar em poucas linhas o que significa a "virada criminológica" que ocorre nos anos 60, confrontando o que costumamos chamar de "paradigma etiológico" [busca das "causas" do delito]:
Como já adiantávamos, a Criminologia etiológica – entendida enquanto tudo que antecedeu o labelling approach – pretendia reduzir o indivíduo envolvido na trama cognitiva criminológica enquanto “criminoso”. Ela procurava causas para dizer: “X é delinqüente porque....”. A Criminologia da reação social, por outro lado, procurou enfrentar o problema desses “é” e “porque”. Ao expor o fato de que há uma inegável defasagem quantitativa entre a taxa de delitos efetivamente cometidos e os punidos, abriu margem para pensarmos em uma seleção qualitativa: apenas alguns vão punidos, porque são mais vulneráveis ao Poder Punitivo. Com isso, a idéia de “estereótipo” desmitificou a figura do “criminoso”. O que pensamos corresponder a um “criminoso” é, na realidade, em estereótipo que corresponde aos selecionados pelo Poder Punitivo, mas jamais a uma qualidade intrínseca inscrita na própria pessoa. Da mesma forma, a ausência de conteúdo “ontológico” ao delito, rechaçado a partir de um relativismo cultural, elimina a possibilidade de correlacionarmos, ou acoplarmos, crime à natureza.
Ora, é precisamente isso que nos dificulta, se não torna impossível, a pergunta pela causa – uma causa oni-abrangente, precisemos – do delito. Se o delito é cometido por uma variedade totalmente heterogênea de pessoas, não há como identificar uma causa – biológica, psicológica ou sociológica – que leve alguém a ser delinqüente. O que costumávamos fazer era “etiquetar” alguém com essa causa. Não perguntamos as causas biológicas que levam alguém a vender um DVD pirata, roubar o sinal da tevê a cabo do vizinho, praticar sonegação ou evasão fiscal. A “normalidade” das pessoas não nos faz pesquisar essas “causas”. O crime pode até não ser algo “normal”, no sentido de ser praticado na maioria do tempo, mas é definitivamente “normal”, no sentido de que é praticado pela maioria das pessoas (basta pensar em injúrias, abortos, sonegação fiscal ou violência familiar), muitas das quais sem qualquer correspondência com os estereótipos da Criminologia etiológica. O labelling, para fazer esse movimento, precisou quebrar um dogma: acreditar que a totalidade dos fatos punidos (ou dos agentes envolvidos) corresponde à totalidade dos fatos cometidos (ou dos agentes envolvidos). Ao ver que essa defasagem é norteada não apenas pelo óbvio critério quantitativo, mas também pelo qualitativo, o labelling colocou em xeque todas as teorias que pretendiam encontrar a “causa do criminoso”.
O problema do projeto é que ele está vinculado ao paradigma etiológico -- ou seja: não passou por uma reflexão aprofundada. É o que acontece com grande parte dos estudos de físicos, biólogos e outros pensadores das áreas não-humanísticas. Como ele acham que tudo aquilo que não é ciência é metafísica [ou simplesmente fantasia], não estudam filosofia e outras áreas. Por isso, se arrebentam para resolver problemas cujas premissas já foram devidamente derrubados.
O problema do determinismo/livre arbítrio, pode-se dizer, já ganhou contornos totalmente diferentes depois de gente como Husserl, Heidegger e Norbert Elias, e mais um montão -- montão mesmo -- de gente. Uma epistemologia pós-fenomenológica, por exemplo, nos daria para pensar porque alguns adolescentes com as mesmas características cerebrais cometem crimes, e outros não. Porque, no final das contas, como Lombroso foi pesquisar entre os presos suas características para fixar o "perfil do criminoso", conseguindo apenas identificar o estereótipo do criminalizado, esses cientistas vão partir do mesmo problema, sem se atentar para quatro décadas de críticas.
Falta cultura humanística -- especialmente filosofia -- para os cientistas, prova de que não é possível fugir da epistemologia, e a epistemologia pragmática dos cientistas acaba desperdiçando boa energia, neurônios e dinheiro.