POR QUE NÃO O LIBERALISMO?
NOS ÚLTIMOS POSTS sobre filosofia política, tenho criticado insistentemente a filosofia política de viés liberal-moderno, que confere primazia ao contrato social e à Constituição como sua versão normativa. De outro lado, seguidamente o Fabs me retruca que o que falta é uma coerência sistemática, que a idéia moderna não está errada, apenas precisa se constituir. Da mesma forma, ele argumenta que precisamos de algo que sirva a todos naquilo que é necessidade básica independente da constituição de um sujeito ético, que, para ele, é (até) uma idéia conservadora. Quer dizer: independente do idiota racista que acha que índios não devem ter acesso ao sistema de saúde, é preciso ter um sistema de saúde garantido pelo Estado que atenda o índio. Isso não pode depender de um nível ético-individual, deve passar para um nível político-sistêmico. Se bem entendi.
Por que eu discordo dessa construção elogiável? Porque creio que está foi exatamente a aposta do Iluminismo. Deixar o indivíduo livre nas suas crenças éticas e passar tudo para um nível político-formal [jurídico, portanto], no qual estarão assegurados direitos a todos independente da simpatia do vizinho. E por que discordar disso?
Uma das minhas discordâncias consiste na idéia de que a noção de direito subjetivo, que é uma das bases de apoio de todo esse raciocínio, é perniciosa e corrosiva. A expressão "direitos humanos" não é apenas problemática do ponto de vista da sua facticidade [quem são os "humanos" no mundo atual?], mas também pela primeira parte: "direitos". A idéia de direito como faculdade subjetiva do indivíduo-mônada da Modernidade tende a se tornar uma espécie de liberdade arbitrária, na qual muitas vezes o meu direito se sobrepõe a qualquer noção básica de justiça. Mas, como é meu direito, peço sem qualquer vergonha em relação ao Outro. [Vejam o caso do casal que adotou uma criança furando a fila da adoção (está no Correio do Povo de hoje); eles alegam, em reportagens sentimentalóides como sói acontecer no assunto, ter "direito" a isso, apesar de sequer o terem. Podemos começar a contar quantas demandas arbitrárias correm na nossa sociedade a título de "direito".]
O conceito de "direito subjetivo", portanto, está diretamente associado à idéia de "interesse" e funciona como espécie de forma jurídica do indivíduo-mônada moderno. Provoca, por isso, uma corrosão moral, à medida que gradualmente mesmo aquilo que é emancipatório [o reconhecimento do "direito"] acaba se desvinculando de qualquer princípio de justiça e, com isso, muitas vezes distorce-se para o viés repressivo [ex. as demandas feministas] e opressor [o "direito de propriedade"]. Pois - como acredito - se a justiça é uma relação de eleidade, em que estão em jogo Outro(s), ela não pode ficar restrita ao cálculo de um indivíduo-mônada como o moderno. Ela precisa sempre se referir ao Outro. Mas a noção de direito subjetivo, base jurídica dos direitos humanos, não carrega nada disso.
Justamente por essa razão considero o francês Gilles Lipovetsky o mais acurado leitor da nossa época. Lipovetsky define nossa época como "hipermoderna" e traça uma série de características: narcisismo, indiferença, vazio, esteticismo. A tudo ele tenta associar características positivas, mas essa parte não me convence nada. De qualquer forma, sua prosa nos permite enxergar o que para mim era o destino da política moderna: o sujeito narcísico contemporâneo. Não vivemos a "pós", mas a "hipermodernidade". A "era do vazio" é só conseqüência do "vazio" que os próprios iluministas colocaram como parâmetro ético, à medida que ética, direito e política passam a ser pensados de forma estritamente formal, como vigência sem significado.
As conseqüências negativas disso tudo? Já falei por aqui várias vezes. Os que estão do lado de fora disso tudo são reduzidos à vida nua e jogados, muitas vezes, em estruturas similares a campos de concentração [das prisões dos EUA aos muros no RJ]. O formalismo jurídico não consegue dar uma resposta suficiente aqueles que estão aquém do direito. Por quê? Porque a teoria do contrato social só seria possível se partíssemos do ponto zero da história. A meu ver, essa é a única chance dela funcionar. Do contrário, aqueles que estão fora lá permanecerão, ela continuará produzindo seus resíduos e abrindo suas frestas nas quais o formalismo será preenchido com decisões de exceção. É preciso acelerar esse processo para interromper a violência que vivemos.
Não vejo como a idéia de "direito subjetivo" possa corrigir isso. A meu ver, ela é apenas parte dessa estrutura. Não vejo como o sistema possa chegar na vida nua. Ela é o resíduo que sobra como destino, não acidente, desse modelo formal. Por isso -- posso estar muito errado, admito --, mas penso que é necessário começar tudo de novo, reconstruir a ontologia da política.