O QUE A ORTODOXIA MARXISTA E A LIBERAL TÊM EM COMUM?
NA REALIDADE, poderia arrolar uma série de pontos para responder à pergunta. Por exemplo, a idéia de um sujeito centrado na consciência, racional e abstrato; ou a dominação da natureza, expressa na fórmula baconiana que ligar poder ao saber, tudo refletido na noção sagrada de "crescimento"; ou ainda a idéia linear de "progresso", que enxerga a história como um continuum em direção à "civilização".
Bem, me interessa apenas um: a impossibilidade de diálogo. Marxistas ortodoxos e liberais ortodoxos [que não são a mesma coisa que "direita" e "esquerda"] nunca estão errados. O que está errado são os fatos. Quando se diz a um marxista, "Olha lá, Cuba não é legal, e a China... bem, nem vou falar da URSS e, por exemplo, do massacre em Praga", o cara sempre responde: "não, é que eles não leram direito, não aplicaram direito". De alguma forma, o socialismo é sempre um projeto que jamais foi implementado, que permanece vivo na sua solidez suprema, sem jamais ser atormentado pelos fatos. Stalin foi apenas um acidente. Se Lênin tivesse vivido, o socialismo teria seguido o rumo correto. Vamos reler Trotsky! O que aconteceu nesses países nada tem a ver com o escrito por Marx, não importa que tenha se repetido mais vezes -- e assim por diante.
Com os liberais é a mesma coisa: "a quebradeira aconteceu porque não houve liberdade de mercado suficiente", como se vê alguns blogs chorando por aí. "A crise só se resolve com menos regulamentação", "o mercado deve corrigir os problemas", "o problema foi a política intervencionista de Bush [hihihi]". Refiro-me à "ortodoxia" liberal como aquela que bate o pé por Adam Smith até a morte. Esses que antigamente citavam a Islândia como padrão a ser adotado por todos os países [e agora, José?] ou que sempre acham que "falta capitalismo" [estão tão quietinhos sobre o assunto, ultimamente, né?].
Quer dizer: não adianta argumentar com liberais e marxistas ortodoxos que os FATOS desmentem suas metanarrativas. Com os liberais, que não existe essa tal de "mão invisível" e que os agentes econômicos são gananciosos e imorais, juntando-se em aglomerados econômicos que tolhem todas as possibilidades de liberdade por parte do consumidor (a sagrada - e meio ridícula - liberdade econômica) e, de outro lado, não indenizam custos que advêm dos seus "serviços" (meio ambiente, saúde, etc.). Não adianta argumentar que isso só deixa os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, e que a "falta de real competitividade" no mercado não é um ACIDENTE do capitalismo, mas a sua tendência natural.
Para os marxistas, não adianta argumentar que não existe o tal "espírito do proletariado", que a maioria da massa tem espírito pequeno-burguês, que a aposta do marxismo é na mediocridade e acaba formando as burocracias totalitárias que testemunhamos, exterminando seus "inimigos", que essas burocracias não são ACIDENTES, mas destinos desses regimes.
Moral da história: FUJA dessa discussão que nem rato de gato quando a vislumbrar. Os dois lados disputam nas suas teologias e, como teologias que são, não são passíveis de discussão. Têm pressupostos metafísicos e não aceitam discutir as coisas no plano da faticidade. A faticidade é interpretada como uma mera "ausência da boa metafísica", e não a metafísica é produto da faticidade (como a boa filosofia contemporânea tenta pensar). Não adianta dizer que "mercado" é algo que não pode aprisionar a política e nem servir de objeto de adoração, nem que autores canônicos e maniqueísmos não resultaram historicamente em bons regimes.
A política é um experimento. Como experimento que é, deve ser avaliada lançada no mundo, pelos resultados que põe. Instituições e ideologias políticas devem existir enquanto sugestões de experimentos, jamais como metanarrativas que procuram totalizar os fatos e funcionar como "Bíblia" invocável contra a realidade. Não perca tempo discutindo com fanáticos.