Mox in the Sky with Diamonds

quinta-feira, agosto 14, 2008

HISTÓRIA NARRATIVA

Que a história não é um "ente" com vontade própria, que Hegel se equivocou e que toda filosofia da história pode parir totalitarismos é algo que parece cada vez mais evidente. A filosofia (pós-)moderna tem sempre buscado enfatizar contingência, acaso, decisão, responsabilidade contra uma transcendência "vertical" ou um determinismo qualquer.
Temos, portanto, uma história "narrada", sempre espécie de narrativa que se alimenta de mitos e perspectivas. Foucault provou ad nauseam que a origem é "cinza", partindo de "emergências" ou "acontecimentos" para traçar suas genealogias. A linearidade é uma fantasia mítica.
Chama atenção, agora, os destinos da nossa narração da história. Estamos realmente acreditando que o comunismo decaiu e o liberalismo tornou-se vencedor porque estamos repletos de democratas e defensores das liberdades individuais. Esquecemos que o grande cerne da derrota do comunismo -- derrota cantada desde o primeiro momento -- é o egoísmo humano, a tosquice e a cretinice, a natureza "canina" (desculpem os cães) do homem, a incapacidade de partilhar e sentir a dor do Outro. Esses, sim, medíocres, é que provocaram a derrota do sonho comunista, "orgulhosos" da sua propriedade privada, da sua exploração econômica, da desigualdade e da hierarquia social. Foram esses canalhas que patrocinaram golpes à exaustão, torturaram dissidentes comunistas e alimentaram nazismo e fascismo. Os poucos liberais genuínos -- os poucos generosos que liam Dewey, Rawls ou Keynes -- são pura exceção. Não foi por ser regime totalitário que o comunismo perdeu; foi por ser um regime solidário.
São esses mesmos vermes canalhas que hoje imprimem o ritmo da nossa sociedade: gestão burocrática (ainda que uma burocracia disfarçada de discurso "modernete" da Administração), primazia do quantitativo e da técnica, disciplina dos corpos, biopolítica eugênica, indiferença social, despolitização, narcisismo e selva econômica.
Todo mundo sabe que compartilho poucas crenças com a esquerda tradicional. Sou anti-marxista. Vejo semelhanças entre comunismo e nazismo. Prezo as liberdades individuais. Mas não posso deixar de lamentar que as pessoas não enxerguem mais a diferença entre esquerda e direita, não percebam que existem os cínicos que gozam com a desigualdade e a injustiça e os rebeldes (às vezes ingênuos, às vezes burros) que estão preocupados em escovar a história a "contra-pêlo", em dar voz aos vencidos. Não é possível que as pessoas não percebam mais a distância que separa os que se preocupam com o Outro e aqueles que estão totalmente indiferentes, inertes, divertindo-se com a situação e destilando prosa cínica.
Preocupo-me com a minha geração e muito mais com as seguintes, porque a queda do comunismo fez muitos dos meus contemporâneos ingressar no discurso cínico, na razão opaca, escondidos atrás de ironias e, no fundo, gozando. A queda das "metanarrativas" abriu espaço para o niilismo total, para a indiferença, para a "festa da Totalidade". Estamos confundido os liberais democratas, os preocupados com os Gulags e a repressão política com os hipócritas e cretinos que se lavam com a indiferença, perpetuam a injustiça e destróem sem escrúpulos.
O discurso marxista morreu. Alguns ainda não acreditam na lápide, mas ele está lá, enterrado. Mas o desejo de justiça, a consciência moral e a indignação com o insuportável permanecem. Ele é que nos separa dos hipócritas e corvos que perpetuam a servidão.
É a loucura por justiça que nos alimenta e não nos deixa morrer.

Marcadores: ,