Mox in the Sky with Diamonds

segunda-feira, julho 14, 2008

O MAL E AS BALEIAS

Desde 1998, quando comprei por acaso meu primeiro livro de Friedrich Nietzsche chamado "Crespúsculo dos Ídolos" (até hoje, um dos textos seminais da minha vida), me tornei um anti-metafísico compulsivo. Estudando Direito, não faltou irresignação filosófica com milhares de artigos, julgados e livros lidos. Depois, já no final da Faculdade, deixei o Direito de lado (quando vi que a coisa não avançava mesmo) e resolvi voltar à filosofia, conhecendo Deleuze, Guattari e autores do "pós-modernismo" como Maffesoli, Virilio e Baudrillard. Foi um caminho sem volta. Ao longo da Especialização e do Mestrado finalmente me voltei para autores em que me encontrei definitivamente, como Levinas, Derrida, Agamben, Rorty, Benjamin, Adorno, Lyotard, Timm, Foucault e Heidegger. Alguns já tinha lido (Derrida, Foucault e Lyotard), mas só constatei sua densidade a partir desse momento.
A leitura do texto de Nietzsche com 18 anos, cheio de indignação e revolta, foi uma verdadeira conversão. Nietzsche não apenas escrevia com sangue, como para mim é necessário, mas ia destruindo, um a um, meus preconceitos metafísicos, indo até o cerne da moral cristã, que tornou o homem ressentido. O mestre da Basiléia parecia estar escrevendo contra aqueles mesmos idiotas puritanos, severos e doentes que eu me indignava. Sua idéia de "além do bem e do mal" me seduziu ao extremo.
Até ler Hannah Arendt e o seu "Eichmann em Jerusalém". Esse livro -- outro texto seminal -- mudou várias das minhas concepções. Não há como ler Arendt e não se convencer que o mal radical estava presente ali, que a catástrofe da Shoah põe em xeque a "meta-moral" de Nietzsche.
Desde então, cerca de um ano para cá, a antropologia filosófica vem sendo um dos temas sobre o qual mais medito. Já ouvi e li pelo menos três autores fantásticos sobre o tema -- Ricardo Timm de Souza, Ernildo Stein e Pergentino Pivatto -- todos com suas diferenças, mas absolutamente fascinantes. O belíssimo livro de Giorgio Agamben, "O Aberto", é fantástico sobre o tema. O que é o humano? Algo violento, guerreiro, dionisíaco, como queria Nietzsche e alguns seguidores como Bataille e Deleuze levaram ao extremo? Ou é, ao contrário, a "transcendência", a capacidade de sair de si em direção à santidade, como Levinas ou Pivatto levam ao extremo? Devemos desativar a distinção entre o humano e o animal, a "máquina antropológica", como quer Agamben?
Não tenho elementos para decidir essa controvérsia. Não creio que um dia terei. Mas guardo cá os meus pensamentos.
Ontem na Folha de São Paulo há reportagem em que se narra que o Japão admitiu procurar justificativas "científicas" na caça às baleias. Para quem não conhece o caso, que se prolonga há alguns anos, desde 1986 foi decretada a proibição de caça às baleias, mas como o carne é parte da cultura japonesa, estes caçam um pequeno número (que aumenta) sob alegação de interesse científico. Isso tem causado revolta de ambientalistas e muitos protestos.
O que me faz pensar sobre o bem e o mal. O ser humano me parece um ambivalente incorrigível, capaz da violência e da santidade, todos nós com agressividade e transcendência no nosso "menu" de ações. Freud, Nietzsche ou Jung me parecem ter razão de que há uma "sombra" intangível que se alimenta dos nossos desejos terríveis, e que a melhor forma de lidar com eles é abertamente, conscientemente, olhando ao abismo. Mas Levinas e Rosenzweig, na outra mão, de me impede de cair no abismo e abraçar o niilismo -- mesmo um niilismo "trágico" --, porque a responsabilidade está aí e todo instante é uma decisão. Posso sair de mim mesmo e transcender. Posso. O ser humano parece uma rede tecida entre esses dois lados, de uma ambivalência desesperadora, perdido em algum local entre um e outro.
Mas o "inumano", o maquínico, a matança industrial que descreve Hannah Arendt não pode ser humana. Sade, como antecedente dos campos de concentração, é a prova disso. Em Sade não temos simplesmente o gozo "inocente" de que fala Nietzsche, pois o além-do-homem parece mais a criança que o camelo ou o leão, mas um gozo cruel, organizado, centrado e ideologizado. A violência não é exercida como impulso irresistível, como falha do super-ego, como gozo desejado. A violência ali é um padrão de conduta, organizada racionalmente na sua filosofia libertina. Filosofia que, na sua estrutura racional, precisa da "vítima", o Outro que é mutilado e destruído.
Me parece que o mal surge exatamente quando essa violência inerente ao ser humano, esse lado dionisíaco ou sombra, junta-se com a razão instrumental, e produz-se assim a tecnologia do campo. Quando a violência humana, típica do nosso lado sombra, conjuga-se com uma estrutura fria e opaca de razão, temos a possibilidade de vislumbrar o inumano -- o mal. É a única forma que consigo equacionar a transição do Japão que caça baleias enquanto cultura de pessoas que precisavam sobreviver e viviam junto ao oceano com o Japão que caça baleias sob o pretexto de "fazer ciência", tudo em proporções industriais. Um certo pessimismo com a técnica e o mal que ela pode produzir é o que me assusta.

Marcadores: ,