Mox in the Sky with Diamonds

terça-feira, abril 22, 2008

TRÊS COLUNAS IMPERDÍVEIS DE CLÓVIS ROSSI

CLÓVIS ROSSI às vezes irrita. Seu pessimismo crônico, crítica implacável e anti-governismo às vezes dão nos nervos. Mas não dá para não reconhecer que se trata de um jornalista com J maiúsculo, desses como Jânio de Freitas ou Elio Gaspari. Quando se lê suas colunas, os nanicos retornam aos seus lugares. Acompanhem essas últimas duas que são simplesmente geniais:
CLÓVIS ROSSI
Os talibãs de São Paulo
PARIS - Antes de escrever, preparo a mala para o retorno ao Brasil. Aterrorizado. De perto, o país -ou pelo menos a parte em que me toca viver, a cidade de São Paulo- sempre me pareceu primitivo, bárbaro. Com as óbvias ilhas de luz ou de sentido comum, mas, no essencial, selvagem. O caso da menina Isabella parece ter levado a um mergulho ainda mais acentuado na barbárie. A reportagem de Laura Capriglione e Ricardo Westin sobre os tipos que se acotovelavam diante da delegacia em que o pai e a madrasta da menina estavam depondo é um compêndio completo sobre o regresso à selva, à lei da selva mais exatamente, de uma fatia dos paulistanos. O texto é um desses momentos em que a essência básica do jornalismo, que é ver, ouvir e contar, joga luz nos subterrâneos da alma de uma cidade que se tornou crescentemente inóspita. Talvez a reação fosse a mesma em qualquer outra cidade do mundo, mas parece evidente que São Paulo e sua selvageria cotidiana atiçam, cutucam, os piores demônios que se escondem nos recônditos da alma. O pior é que viajei após um texto em que criticava a condenação antecipada do pai e da madrasta pela polícia, sem que tivesse havido, naqueles primeiros momentos, qualquer investigação séria que permitisse acusar ou inocentar quem quer que fosse. Dizia, então, que, se o casal fosse culpado, acabaria sendo condenado cedo ou tarde. Mas, se fosse inocente, teria sido condenado irremediavelmente, sem provas, sem julgamento, sem investigação. Vinte dias depois, volto diante de um cenário ainda mais selvagem: o casal foi preso, julgado, condenado e linchado (simbolicamente, mas quase literalmente) a cada dia. Já não apenas pela polícia, mas pelo público ou, ao menos, a parte dele que vai à porta da delegacia ou pela massa que se cala diante da vitória dos talibãs
de São Paulo.

CLÓVIS ROSSI
Um certo gosto de sangue
SÃO PAULO - Duas ou três cartas sobre o caso Isabella me horrorizaram. Leitores aparentemente alfabetizados decretavam a culpa do pai e da madrasta da menina só com base nas informações que a polícia libera para o jornalismo. Jogam no lixo o devido processo legal, um dos principiais pilares da civilização. Pensei que fosse reação restrita a exóticos de diferentes origens, atraídos pelos holofotes da TV, mas verifico, horrorizado, que há muito talibã solto por aí. Na maioria das cartas, chovem críticas à mídia, apontada como única responsável pelo circo armado em torno do caso. Responsável, sim; única, não. Sem que as autoridades -as ÚNICAS que detêm informações sobre o caso- alimentem o circo, não há circo, ou o circo é menos nefasto. O pecado original é, portanto, do delegado, que, em vez de apenas investigar, atua simultânea e indevidamente como promotor, juiz e alto-falante, condenando o casal desde o início, antes mesmo das primeiras investigações. Se se pretende civilizar um país talibanizado, é preciso primeiro que a polícia se comporte com a discrição indispensável. A polícia portuguesa, por exemplo, não acusou os pais no caso da menina inglesa Madeleine, muito parecido com o de Isabella. Quando o fez, a mídia foi atrás e teve que pedir desculpas publicamente, na primeira página, e ainda doar uma baita grana para um fundo criado pelos pais para procurar a filha. E o fizeram sem saber se os pais são de fato inocentes. Quanto à mídia, não vejo nenhum capanga armado obrigando o telespectador (ou leitor) a ficar sintonizado nos programas policialescos ou, agora, no noticiário sobre a menina morta. Há público -e grande- para isso. Alguns são apenas portadores da normal curiosidade humana. Outros têm gosto de sangue na alma, não nos iludamos.

Sobre o tema, ainda há essa genial de Fernando Barros e Silva, outro ótimo jornalista:

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Teatro dos vampiros
SÃO PAULO - Perto do fim de "Budapeste", José Costa (ou Zosze Kósta), o narrador do romance de Chico Buarque, descreve a sensação de estar dentro de uma ficção em seus passeios pela orla do Rio:"As pessoas que eu topava (...) não me pareciam afeitas ao ambiente. Às vezes eu as via como figurantes de um filme que caminhassem para lá e para cá, ou pedalassem na ciclovia a mando do diretor. E as patinadoras seriam profissionais, ganhariam cachês os moleques de rua, ao volante dos carros estariam dublês, fazendo barbaridades na avenida.
"Embora distante, essa passagem de mestre veio com força à memória na última sexta, diante da imagem da multidão aglomerada e disposta a linchar o casal suspeito pelo assassinato de Isabella.
Aqueles tipos pareciam figurantes, coadjuvantes, dublês involuntários num filme B de horror. Um "popular" se exibe fantasiado de Bin Laden; outro vem de Cuiabá, 12 horas na estrada; um terceiro surge com um bolo de aniversário, devorado em segundos pelos "curiosos".
A novidade, porém, não está na atuação desses zumbis sociais; o que agora espanta não é apenas a fúria carnavalesca deste lúmpen da sociedade do espetáculo.
Quando o programa da Record coloca, no meio da tarde, uma cama no palco para reproduzir, no estúdio, o quartinho da menina, a apelação abjeta desse teatro parajornalístico é muito evidente.
E quando a Rede Globo decide transmitir ao vivo, durante três horas, sem intervalos, as imagens do casal acossado no dia dos depoimentos -o que devemos pensar?
Não excluo, evidentemente, a mídia impressa -nem a Folha- dos comentários. Mas é a TV, como se sabe, quem chega às massas, ainda mais neste país. A morte de Isabella já se tornou um capítulo de uma guerra desembestada por audiência. E o jornalismo dito "sério" está a reboque dessa escalada bárbara.
Ou, quem sabe, William Bonner seja apenas um ator da novela das oito representando um locutor que nos narra uma tragédia grega...

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