A GRANDEZA DE LEVINAS
Admita-se ou não a sua crítica à filosofia ocidental, amparada na tradição hebraica e na sabedoria rabínica, distante do logos grego e mais focada na ética -- entendida como relação face-a-face [razão pela qual Derrida jamais aceitou o termo] --, aceite-se ou não sua resposta à ontologia fundamental do seu professor Martin Heidegger, é impossível não admirar a atitude de Emmanuel Levinas diante da catástrofe que presenciou.
Prisioneiro durante a Shoah [Holocausto] dos nazistas, mas mantido vivo por ser um oficial, o filósofo que depois se radicou na França viu toda sua família judia ser exterminada nos campos de concentração e ainda teve a decepção de ver Heidegger tornar-se reitor da Universidade sob a batuta de Hitler e fazer discursos apologéticos daquele regime terrível.
Era de se imaginar que Levinas mantivesse, por isso, uma atitude hostil com nosso mundo.
Ao contrário, o filósofo resgatou a ética e propôs uma reformulação das relações humanas a partir de um desligamento da violência, remetendo ao momento primeiro em que a paz é oferecida, a partir do Rosto vulnerável que se apresenta e diz: "não matarás". Levinas é o anti-hobbes por excelência: para ela, é a guerra que é degeneração da paz inicial, e não a paz um produto de uma ordem que estanca a guerra natural. A guerra é sempre recusa, indiferença ao Outro.
Nessa visão de ética é a diferença, aqui nomeada alteridade, que ganha o primeiro dos lugares. O humanismo vai rejeitado apenas por não ser suficiente humano. O humano é o local da diferença, a unicidade de cada um que jamais se repete. A alteridade é aquilo que pertence a cada um e é inapreensível, não posso a representar com as minhas imagens mentais. O Outro é inalcançável pelo meu intelecto. É sempre mais.
Assim, antes de tudo devemos nos desfazer da base da violência: a representação. Não posso tematizar, pensar o Outro, como se fosse capaz de esgotá-lo. É preciso que, antes de o transformar em objeto de conhecimento, saiba que diante dele estou numa relação de saudação, de responsabilidade, que não posso tratá-lo como coisa apenas. Ele é alguém e é com alguém, e não alguma coisa, que me relaciono.
É admirável a atitude de Levinas. À violência extrema que sofreu, reagiu com uma solene proposta de paz.
Mas escrevo essas linhas para, ao mesmo tempo que saúdo a atitude de Angela Merkel de ir ao Parlamento Israelense para se dirigir aos judeus depois da Shoah, dizer que entendo a atitude dos parlamentares que se negaram a "ouvir o idioma dos assassinos dos seus avós" [clique aqui para ver o vídeo]. Depois de ver os álbuns recentemente publicados pela New Yorker, que o Fabs andou comentando, é difícil lidar de forma sublime com o mal radical. Se o nosso estômago se contorce lendo as páginas de Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, pelas quais o extermínio dos prisioneiros é tratado como tarefa industrial e o mal é banalizado, imaginem o que pensam os herdeiros da catástrofe.
É triste, no entanto, que os próprios judeus, donos da sabedoria que inspirou Levinas e combate pela raiz o mal que elimina a diferença, ajam como seus próprios algozes, ainda que por razões compreensíveis. Precisaremos de algum tempo mais até que a ferida cicatrize e que Israel finalmente se abra para o Outro [especialmente o Outro-palestino], nos termos da própria sabedoria judaica.