Mox in the Sky with Diamonds

segunda-feira, janeiro 21, 2008

REPARAÇÃO, DE IAN McEWAN

Confesso -- e nem é a primeira vez que faço isso por aqui -- que seis anos de Direito me endureceram completamente. De um contumaz devorador de literatura, que lia pelo menos dois ou três romances por mês, tornei-me quase insensível para esses livros. Esse verão, no entanto, decidi que iria retormar o hábito, custe o que custar. Comecei com esse livro, que tinha presenteado para a Nati sob recomendação do finado NoMínimo, dizendo-se inclusive que se tratava, provavelmente, do melhor escrito neste século.
O romance, realmente, empolga. O "realismo psicológico", como a personagem e narradora Briony descreve seu próprio estilo, é simplesmente fantástica, e uma escrita clássica e elegante mostra como não é necessário escrever um novo Ulisses [ou algo mais hermético] para estar entre os grandes da literatura.
Seleciono a seguinte passagem como exemplo:

Um segundo pensamento sempre vinha após o primeiro, um mistério gerava outro: seriam todas as demais pessoas realmente tão vivas quanto ela? Por exemplo, seria sua irmã realmente importante para si própria, tão valiosa para ela mesma quanto Briony era? Ser Cecilia seria uma coisa tão intensa quanto ser Briony? Sua irmã também teria um eu verdadeiro por trás da onda que se quebrava, e passaria tempo pensando nisso, com o dedo quase encostado na cara? E as outras pessoas, inclusive seu pai, e Betty, e Hardman? Se a resposta fosse sim, então o mundo, o mundo social, era insuportavelmente complicado, dois bilhões de vozes, os pensamentos de todo mundo a se debater, todos com igual com igual importância, investindo tanto na vida quanto os outros, cada um se achando o único, quando ninguém era único. Era possível afogar-se aquele mar de irrelevância. Mas se a resposta fosse não, então Briony estava cercada de máquinas, inteligentes e agradáveis vistas de fora, mas sem aquele sentimento vivo oculto, interior, que Briony tinha. Era uma idéia sinistra e desoladora, além de improvável. Pois, por mais que era muitíssimo provável que todo mundo tivesse pensamentos como os dela. Isso ela sabia, mas apenas de um modo um tanto árido; não conseguia senti-lo de verdade.

Um grande resumo, literário, do que significa a dimensão da alteridade. Mais detalhes não por aqui, mas, talvez, em algum paper.

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O AMANTE DE LADY CHATTERLEY, DE D. H. LAWRENCE
Constava como uma das lacunas nas minhas leituras dos clássicos a ausência desse romance. É um grande livro, irrigado de uma sensualidade tremenda, que faz despertar toda corporalidade inerente à nossa atividade humana.
Longe de qualquer vulgaridade -- vulgaridade que não me faz mal, vide Henry Miller, um dos meus favoritos, mas aqui não se faz presente -- Lawrence explora, na relação entre Lady Chatterley, Connie, e o couteiro Mellors, toda a humanidade presente na relação sexual, todo esse dispositivo entre o humano e o animal que os profetas da ascese tentaram eliminar. Felizmente, não conseguiram. Felizmente, tivemos Nietzsche para nos salvar. E depois Freud, Bataille, Deleuze, Foucault e mais um monte de gente, até a Madonna.
Não pude deixar de relacionar esse livro com outro que lia simultaneamente -- O Aberto, do filósofo Giorgio Agamben -- no qual Agamben, refletindo sobre o que difere o homem do animal, próximo ao final cita Benjamin pra dizer que o sexo é o que desativa essa separação. Lawrence parece trabalhar nesse estranho vão onde recém começamos a caminhar.
O livro, que data de 1928, ainda escandalizaria alguns puritanos. Felizmente, o mundo não é mais dos puritanos. Ao menos não todo o mundo.

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O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
O absurdo parece ser o grande tema do clássico "O Estrangeiro", de Camus. Dele, havia lido apenas "A Peste".
Achei a obra um pouco próxima de Kafka, pela naturalidade dos eventos que vão se sobrepondo de forma monstruosa até redundar na mais completa catástrofe, perante o qual o personagem reage com sincera indiferença.
O fluxo dos acontecimentos e a vida assolada na mediocridade, a indiferença completa e a ausência de qualquer sinal de responsabilidade, tudo parece refletir a terrível angústia dos tempos de Camus. Não parece à-toa que grandes autores dessa época tenham sinalado esse clima de profundo desencantamento -- seja em um Heidegger e sua angústia como tonalidade emotiva fundamental, ou a profunda Náusea de Jean-Paul Sartre. Um livro sobre o qual terei de refletir um pouco mais.
Atualmente, (re-)lendo O Processo, de Kafka, e A História do Olho, de G. Bataille.
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"DESEJO E REPARAÇÃO"


Como eu dizia há dois posts atrás, 2008 começa com dois grandes filmes. Não tenho o mesmo rigor de lançamentos no cinema como tenho por aqui com a música por uma simples razão: via de regra, não baixo filmes. Só filmes raros. Acho muito trabalhoso e gosto de ver no cinema. Por isso, um lançamento musical chega por aqui instantaneamente, enquanto que as películas seguem a data de lançamento no Brasil [e pior: em Porto Alegre].

A rigor, eu teria que rever Desejo e Reparação. Vendo o filme menos de duas semanas após ler o livro -- pura coincidência! -- não pude deixar de, o tempo todo, ficar fazendo comparações. Ou de não querer perder minhas imagens mentais de como imaginava os personagens.
Mas, apesar disso, não posso deixar de reconhecer uma grande produção, que foi razoavelmente fiel ao livro, com boas interpretações dos atores e algumas cenas belíssimas, das quais sem dúvida a onipresente cena da praia, citada sempre, é exemplo. Como estava ainda muito contaminado pelo livro, não pude deixar de reconhecer dois problemas no filme: indicia um pouco em demasia o que fica mais realmente misterioso no livro, e deixa de explorar a agressividade das cenas de guerra do romance, que mostram o horror da 2ª Guerra Mundial. Fora isso, tudo é muito bem feito, inclusive a "adaptação" no final.

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"A VIDA DOS OUTROS"




Filme maravilhoso. Longa alemão de 2006 que só agora chega a nós, trata de um membro da Polícia Secreta da Alemanha Oriental que faz uma escuta na casa de um escritor socialista, procurando algum indício de "traição", mostra como todas as Totalidades são perigosas, inclusive as de esquerda. No final, os dispositivos do poder são tomados por burocratas sujos que formam uma elite corrupta e desprezível. É a pulsação do humano -- pulsação do concreto -- que mostra um nó que vai se apertando ao longo do filme, até atingir seu ápice no final. Um nó surpreendente, mas que vai se tornando imperativo até virar inevitável.
Realmente, eu não quero contar mais. Vá lá e confira.

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