Mox in the Sky with Diamonds

sexta-feira, dezembro 14, 2007

A LIMPEZA INSUPORTÁVEL E OS SEM-PALAVRA


A definição do Outro como parasita utiliza os medos profundamente arraigados, a repulsa e a aversão a serviço do extermínio. Mas também, e de modo mais seminal, ela coloca o Outro a uma enorme distância mental na qual os direitos morais não são mais visíveis. Tendo sido despojado de sua humanidade, e redefinido como verme, o Outro não é mais objeto de avaliação moral.

Zygmunt Bauman, em "Modernidade e Ambivalência".

A partir do texto que li no novo blog da Natália, que vale a pena ler não só pelos seus argumentos, mas também pelo fato de a autora conhecer o problema de perto, surgiu-me a ocasião de resumir, por aqui, um dos capítulos da minha dissertação e até avançar um pouco.

Natália fala das operações de "limpeza" que estão sendo realizadas pela Prefeitura de Porto Alegre, comandada pelo Sr. "Greve-dos-Acontecimentos" Vento Negro, retirando os moradores de rua de locais visíveis às pessoas de classe média e da elite. A estratégia é simplesmente fechar esses espaços, expulsando as pessoas que estão morando por ali para lugar-nenhum. Os cidadãos "ordeiros" estão de acordo.

Também nessa reportagem o relator da CPI declara que os presos são tratados como "lixo humano". E nessa reportagem o jornalista utiliza a expressão "limpam" os morros para dizer as providências que foram tomadas para a visita do Presidente. Vejam um trecho:

Desde o início da semana, militares e policiais do Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (Gpae) estão ocupando as duas comunidades, consideradas como altamente perigosas e dominadas pela facção criminosa Comando Vermelho, comandada da prisão pelo traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. Além do reconhecimento da área, o Exército vasculha os morros e faz uma "limpeza", prendendo suspeitos e verificando locais que podem trazer riscos ao presidente, segundo informaram ao UOL alguns oficiais.

Interessa-me exatamente explorar essa relação entre "ordem" e "limpeza", palavras que vêm constantemente juntas com o vocabulário midiático que trata do assunto e falam muito sobre o que se está fazendo.

A antropólogo britânica Mary Douglas foi quem tratou, com método estruturalista, o assunto com inigualável maestria no seu livro "Pureza e Perigo" [há uma edição portuguesa, traduzida pelas edições 70].

Douglas conclui, realizando pesquisas etnográficas, que nossa idéia de "pureza" está intimamente ligada à idéia de "ordem". Nossa idéia do puro e do impuro, contrariamente ao que costumamos imaginar, está muito menos ligada ao nojo da coisa em si do que à posição que essa coisa ocupa dentro das nossas classificações. O exemplo do sociólogo Zygmunt Bauman, que segue a idéia de Douglas, é o que deixa mais claro: um omelete sobre o prato pode nos parece a coisa mais apetitosa do mundo, mas certamente dentro da nossa gaveta de meias não será. Tampouco o sapato bem lustrado será agradável sobre a mesa, embora no nosso armário possa parecer intocável. É dizer: nossa idéia do puro e do impuro está intimamente ligada à nossa visão de ordem do mundo. A impureza é sempre uma transgressão dessa ordem.

Douglas avança mais um pouco e nos mostra como essa transgressão da ordem, que se manifesta na impureza, para nós é vista como um perigo, algo que representa uma ameaça. A impureza de um indiano de casta inferior que transgride seu lugar representa, sempre, um perigo -- que exige os devidos rituais "salvadores" ou sua exclusão pura.

Pois bem, em que isso se relaciona com nosso problema em Porto Alegre?

As palavras "limpeza" e "ordem" não vêm por acaso. O morador de rua, fora da nossa ordem habitual, está fora-do-lugar, é alguém que deve ser retirado de onde está, de um local visível, porque é visto como "impureza". Como impureza, exige limpeza. O "cidadão de bem" não quer se confrontar com nada que atrapalhe seu mundo ordenado. Quando vê o morador de rua, que escancara um mundo confuso, complexo e injusto, prefere eliminá-lo como impureza. É por isso que se trata de uma "limpeza".

A similitude de palavra com fatos aberrantes como as "limpeza" dos judeus no III Reich e a "limpeza étnica" ocorrida na ex-Yugoslávia não é pura coincidência. Na raiz, o problema é exatamente o mesmo e identifica um problema ético gravíssimo.

Aquele que é diferente ofende a ordem. É impuro. E, por isso, deve ser eliminado o quanto antes. Ou, mais suavemente, deve ser ao menos tirado da visão. No fundo, é um Outro que se torna insuportável a mim. Fico preso na minha bolha de serenidade -- meu carro de vidros fechados que transita pela Ypiranga ignorando os pedintes em cada sinaleira -- e quero que nada se interponha na minha ordem. O Outro que me incomoda deve ser eliminado.

É aqui que entro no segundo aspecto importante do tema. Esse "Outro" que nos é insuportável simplesmente não tem direito à palavra. Perceberam que nas reportagens que envolvem criminosos ou moradores de rua, ao contrário do normal, a parte envolvida jamais é ouvida? Simplesmente surrupiamos o direito à palavra destes que consideramos ser menos que pessoas. É chocante encarar a própria realidade, não? Por que ao contrário de políticos, empresários, profissionais liberais, donas-de-casa, empregadas domésticas, etc., essas pessoas simplesmente não são ouvidas? É porque, no fundo, a "sociedade", a boazinha sociedade que posa de vítima todos os dias nos jornais, considera-os menos que humanos.

Só que, apesar disso, eles falam. E, quando falam, normalmente não é com palavras.

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