Mox in the Sky with Diamonds

terça-feira, junho 09, 2009

O COCÔ

UM DIA, DÊNIS levantou e sentiu um ligeiro desconforto. Nunca tinha sentido antes, mas de alguma forma aquela sensação começou a tomar cada vez mais corpo. Era algo vinculado ao olfato, uma espécie de atrito, algo que embrulhava seu estômago. Dênis não entendia o que estava acontecendo, mas, após tomar seu café da manhã e começar a se vestir para o trabalho, já não agüentava mais. Começou a caminhar pelo apartamento e ver de onde saía a razão do seu desconforto. Sem muita demora, descobriu que vinha do sagrado cocô. Como? Logo daquilo que era mais importante na sua casa? Sim, aquela coisa marrom e enrugada estava lhe causando seu mal-estar. Sem palavras para definir o que se passava, resolveu chamar de fedor. Aquilo fedia muito. Aliás, ele nunca tinha percebido ter olfato -- achava que o único sentido relevante era mesmo a visão. Só com o atrito do fedor ele conseguiu perceber que seu nariz servia para algo além de respirar.
Quando chegou ao trabalho, Dênis percebeu o mesmo fedor. Enquanto os colegas trabalhavam calma e mecanicamente, Dênis sentia cada vez maior repugnância pelo cocô, chegando quase a ter ânsia de vômito. Os colegas, nem aí. Foi então que ele não agüentou e chamou José para conversar.
- José, já percebeste que sai do cocô algo que causa mal-estar?
- Quê?, perguntou José. Estás dizendo que sai algo de ruim do SAGRADO cocô? Impossível.
- Pois é, nunca tinha percebido. Mas hoje acordei com um mal-estar... Nomeei esse negócio que senti de fedor.
- Fedor? FE-DOR? Hahahahaa, que palavra engraçada.
Foi então que José também sentiu o mal-estar que Dênis mencionava. Ao vislumbrar o sagrado cocô que iluminava a repartição, aquela coisa rugosa, longa, em forma de ferradura, cor um pouco amarelada, José também percebeu que aquilo fedia.

A notícia se alastrou em velocidade acachapante. Em poucos dias, milhares de pessoas sentiam mais e mais o fedor do sagrado cocô. Começaram a jogar fora seus objetos sagrados, normalmente postos no centro da sala, porque não agüentavam mais o fedor. A mídia ecoava notícias sobre a catástrofe do cocô. Especialistas eram chamados a discutir. Técnicos afirmavam com certeza científica que a presença do cocô não faz nenhum mal à saúde.
Não tardou a surgir a militância do cocô. Os conservadores afirmavam que o cocô é a base da sociedade e que essa anarquia modernosa arruinaria tudo. Desfilavam carregando pedaços da substância marrom - às vezes derretida entre os dedos -- e contavam com o apoio da polícia para reprimir passeatas contra o o cocô. "A bosta é a base da nossa união", afirmavam esses conservadores. Livrar-se dela é romper com a nossa sagrada tradição.
Os movimentos avolumaram-se. A maioria ainda tinha as fezes em casa -- tinham medo de algum castigo caso se livrassem delas, embora já sentissem o fedor. Libertários reivindicavam uma vida menos fétida (sofisticação de "fedor" que rapidamente surgiu), pugnando pela simples eliminação de todo e qualquer cocô da residência. Os conservadores, por outro lado, afirmavam que sem cocô o homem é indomável, que sempre existiu cocô, que essa libertinagem era absurda. Eram apoiados pela mídia - que desenhava a queda do cocô como catástrofe e decadência - e pelo Estado, que reprimiu todo aquele que se rebelava contra a merda. Diante das profanações que eliminavam o cocô em praça pública e da ofensa à tradição e aos bons costumes que aquilo representava, os radicais começaram a comer cocô. Os anti-cocô não raro vomitavam ao ver seus adversários cobertos de merda pelos lábios, queixo e bochechas.

E assim foi a batalha, até que um burocrata resolveu o problema: em vez de confrontarmos o fedor da merda, deveríamos todos - obrigatoriamente - usar máscaras que nos protegiam do fedor. O cocô continuou no meio da sala, para alegria de todos.

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