Mox in the Sky with Diamonds

sexta-feira, dezembro 19, 2008

MEDICINA PRECISA DE UM "BANHO DE NIETZSCHE"

NIETZSCHE FOI UM AUTOR absolutamente decisivo na história da filosofia. Como a filosofia dá os alicerces para o pensamento, todas as áreas do conhecimento deveriam passar por um processo de problematização a partir do filósofo da Basiléia. O Direito - como área extremamente conservadora que é - resistiu muito, mas hoje, passo-a-passo, Nietzsche vai entrando lentamente. A psicologia é toda Nietzsche; a filosofia é dividida entre nietzschianos e não-niezschianos (embora alguns "nietzschianos" não sejam adeptos de Nietzsche); sociologia e antropologia também são áreas que se fizeram sentir o impacto do escritor de "Humano, Demasiado Humano". A medicina, no entanto, área de maior envergadura conservadora [mais que a teologia], pouco sentiu a pedrada que Nietzsche disparou na Modernidade.
Serena, tranqüila, cheia de certezas e fórmulas, a medicina ainda se acredita espécie de área da "verdade" e da "bondade", sendo por isso explicável o extremo conservadorismo da maioria dos médicos, geralmente identificados com a direita política. Os médicos acreditam, de um lado, que sua "ciência" só lhes traz a "verdade", sendo por isso inquestionável pelos profanos. De outro, que só querem o "bem" do indivíduo, sendo todas as outras forças que são a eles opostas "irracionais" e "atrasadas".
Não lhes consta perguntar, por exemplo, sobre o conceito de "saúde". O que é saúde? Certamente um médico dará um conceito biológico de saúde, extraído da verdade da sua ciência. Será, no entanto, que "saúde" é um conceito biológico?
Se sabemos que a saúde não foi a mesma na história para os mais diversos povos, e que se a medicina está imbricada com a biologia, deveríamos saber também que "vida" não teve o mesmo sentido ao longo da história. Os gregos distinguiam bíos e zoé; os romanos, o corpo soberano e a vida nua, etc. O que predomina no nosso tempo é uma visão "higienista" de vida, derivada, como bem apontou Jurandir Freire Costa na melhor palestra que assisti no ano, da cisão cartesiana entre "res cogitans" e "res extensae". Desse o corte cartesiano o cientificismo produziu outro corte (em nome do "empirismo"), reduzindo tudo ao corpo biológico. Nossa relação com a vida se daria a partir da nossa relação com o corpo físico.
Esse dispositivo de poder começa a era que chamamos de "biopolítica", em que o poder se interessa pelo corpo do vivente enquanto corpo biológico e não está mais unicamente presente na burocracia estatal - mas também nos peritos médicos, nos assistentes sociais, etc. Se, no seu início, esse dispositivo era tosco e vinha em livros de Criminologia a partir de indivíduos feios e delinqüentes (Lombroso e sua "antropometria"), hoje ele se sofisticou e não apenas se fundiu com as áreas mais tecnológicas da medicina (neurobiologia, farmacologia e genética), como também com outros dispositivos de poder que até então estavam separados (ideologia de bem-estar, trabalho, arte, estética corporal, educação física). O "narcisismo" contemporâneo mesclado com new age e consumismo/espetáculo hoje compõe o principal dispositivo em atuação na nossa sociedade, que cada vez mais se especializa na captação dos seus meios profanatórios (sexo, rock, drogas, etc.). Assim, facilmente um chá do Santo Daime profanatório da "saúde" é transformado em droga industrial receitada "limpamente" pelos mais gabaritados consultórios psiquiátricos.
Falta Nietzsche na medicina para que a noção de "saúde" comece a ganhar um sentido mais humano. Nietzsche nos ensina que não somos "limpos", "bons", nem nada disso. Precisamos tanto do apolíneo quanto do dionisíaco. A medicina contemporânea higienista, no entanto, cada vez mais caminha como um dispositivo de controle que reprime o dionisíaco em nome da "saúde" do vivente, entendida como uma vida plenamente apolínea, cheia de salada, sucos naturais, caminhadas tediosas, doppings lícitos e aparelhos de musculação.
O pior é que o serviço já está pronto: Foucault já deu esse "banho de Nietzsche" na medicina. Falta os médicos começarem a lê-lo para descobrirem que saúde não é um conceito natural.
Conta-se uma piada em que um indivíduo chega ao médico e afirma: "doutor, não fumo, não bebo, não estou na vida boêmia, não como carne, evito gorduras, não faço sexo. Quantos anos ainda tenho de vida?". E o médico nietzschiano responde: "Vida? Que vida?".

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