Mox in the Sky with Diamonds

sexta-feira, julho 04, 2008

FILOSOFIA SEMPRE, DENTRO DE TUDO

Uma das características da nossa cultura científica (paradigma, sabe?) contemporânea é a ojeriza pela filosofia. Biólogos, físicos, neurocientistas, sociólogos e psicólogos têm alergia ao raciocínio filosófico. Foi o Positivismo científico, depois o Positivismo lógico (pai da filosofia analítica) que empobreceu o horizonte filosófico nas ciências, inflacionando a idéia de "empirismo" e rechaçando todo o resto como "metafísica", pura especulação sem base verificável e, por isso, de valor nulo.
Infelizmente, a maioria dos nossos cientistas não teve o prazer de ler Husserl, Heidegger, Merlau-Ponty, Levinas ou mesmo Dewey e Rorty para descobrir que o "empirismo" não é um ponto de vista neutro, ausente de reflexão filosófica, mas a rigor consiste numa estratégia "ingênua" de descrição da realidade, que não percebe o tempo e a faticidade como elementos decisivos para a constituição da "objetividade". Não percebem que o "fato bruto", que pretendem absorver pelo empirismo, não vem desacompanhado de sentido e mundo, e que essas categorias determinam a nossa visão sobre os entes. Para eles, isso é relativismo. Para quem entendeu a perspectiva fenomenológica, o empirismo é ingênuo, tributário do antigo e ultrapassado realismo.
Acredito que o trabalho das neurociências é o grande exemplo dos problemas epistemológicos de base. Voltados para um olhar empirista, os neurocientistas acabam teorizando sobre dados empíricos brutos novos a partir de conceitos antigos. Tomemos dois exemplos.
O primeiro é que questão razão/emoção. É célebre o livro de Antonio Damasio chamado "O Erro de Descartes", no qual prova pela via empírica a inseparabilidade da razão e emoção, partindo de pesquisas com cérebros danificados. Damasio, no entanto, não percebe que toma dois conceitos filosóficos -- razão e emoção -- como se fossem dados brutos, partindo deles para sua análises. Desde Nietzsche e Heidegger sabe-se que toda ação humana é acompanhada de uma "tenacidade emocional", quer dizer, de um estado de espírito emotivo, daí a importância da angústia como elemento existencial decisivo para Heidegger (Agamben, por exemplo, tem belas páginas escritas em "Estâncias" sobre a melancolia). Os conceitos de razão e emoção de Damasio, portanto, não são naturais, mas na verdade premissas epistemológicas que se baseiam na própria filosofia cartesiana (afinal, a mais influente na ciência moderna). Quer dizer: seu livro só faz sentido como crítica interna ao cartesianismo, mas não acrescenta nada para quem leu "Ser e Tempo" ou as ácidas críticas de Nietzsche sobre a "psicologia" dos filósofos.
Da mesma forma, neuros como Daniel Goleman procuram falar de uma "inteligência emocional" e depois outras. Para Goleman utilizar esse conceito, ele já passou por um nível epistemológico cartesiano, partindo da idéia de "inteligência", tentando mostrar que a ela também acompanha a "emoção". Inteligência, portanto, é um conceito não-empírico, que formata a informações posteriormente recebidas como "fatos brutos". Provavelmente se acrescentarão 50 novos tipos de "inteligência", sem darmos conta de que o problema é propriamente filosófico, e não científico, sobre o que afinal é inteligência. Se tivermos lido Heidegger e Levinas, certamente saberemos que a experiência humana é mais rica do que a cognição, que o pensamento é parte da existência, e por isso teremos que ter um conceito mais elástico de inteligência. O conceito vem antes que a pesquisa empírica.
O mesmo se dá, por exemplo, nas inúmeros pesquisas neurológicas que, na ânsia do empirismo, acabam retornando a um dualismo cartesiano, separando "corpo" e "mente" como se fossem duas coisas distintas e, por isso, ignorando todo genial trabalho de Merleau-Ponty.
Na Criminologia, isso ainda é mais claro. A Escola de Chicago -- centro de inúmeras pesquisas durante os primeiros 50 anos do século passado -- tinha um enorme repertório de pesquisas de campo com estatísticas e cartografias do delito baseadas em pesquisas de campo. Bastou um criminólogo de nome Edwin Sutherland abrir o conceito de "crime" (alargando as pesquisas para o "crime de colarinho branco") para todos os determinismos ecológicos caírem por terra. O empirismo exagerado da Escola de Chicago a impediu de enxergar aspectos importantes que constituíam a recepção dos dados brutos que foram se acumulando.
A ciência, assim, não está desvinculada da filosofia; antes o contrário, sempre e sempre todas as pesquisas científicas estão vinculadas a algum paradigma filosófico, interpretando os fatos brutos por meio de conceitos que muitas vezes podem estar surpreendentemente ultrapassados.

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