"ESTOU SÓ TRABALHANDO"
Lendo a desculpa dos arrozeiros de Roraima para atirarem em índios no território Raposa/Sol, que recentemente fez ressurgir o discurso milico-autoritário que há tempos não se manifestava [exceto na questão das indenizações], não pude deixar de refletir sobre a frase "estou apenas trabalhando". Os arrozeiros, invadindo as terras, alegaram que só queriam trabalhar.
Você está dirigindo tranqüilamente quando um ônibus, uma lotação ou um táxi bate no seu carro, em manobra imprudente. O motorista se vira e diz: "só estou trabalhando". Você está sendo explorado em serviços que o maltratam como cliente: "só estou trabalhando". Etc.
O "só estou trabalhando" é uma versão para o "pay the mortgate", que tantas vezes aparece no bom filme "Obrigado por fumar". É uma das justificativas que é aceita para qualquer coisa.
Certamente os soldados que cuidavam dos campos de concentração também "só estavam trabalhando". Eichmann só queria cumprir suas suas obrigações. Os carrascos que torturam prisioneiros em Guantánamo também "só estão trabalhando". Os médicos que faziam experimentos humanos também estavam trabalhando.
Quer dizer: trabalhar não isenta alguém de ser um canalha e estar fazendo uma canalhice. Se existe uma razão para a podridão em que vivemos, é essa idéia de autoconservação [para falar com Adorno] que se justifica a qualquer preço. Posso tudo, desde que seja para minha sobrevivência. Ou da minha família [algo bem burguês, no sentido cultural do termo]. Estou fazendo publicidade para um produto cancerígeno, mas preciso pagar minhas contas. Estou fazendo reportagem paga para empresa produzir devastação ambiental, mas preciso manter meu emprego.
Esse apego e essa isenção do juízo da canalhice são as razões que, em última instância, mantém a estrutura podre como está.