Mox in the Sky with Diamonds

sexta-feira, novembro 30, 2007

SER LATINO-AMERICANO É UM DESAFIO







Eu não gostaria de ser venezuelano. Nem boliviano. Nem equatoriano. Porque, de um lado, eu teria pessoas vivendo em condições degradantes, sendo espoliadas pelas elites há 500 anos, sendo roubadas, ignoradas, escravizadas, tratadas como lixo, com plena indiferença. De outro, ditadorzinhos meio perdidos, apoiando-se em modelos caudilhos, falando bobagem e pregando doutrinas com cheiro de mofo.
Eu não gostaria de ter que decidir entre apoiar um líder patético, como Chavez, que tenta se perpetuar no poder, ou estar em uma manifestação ao lado de plutocratas que espoliam a população há alguns séculos e só estão interessados em manter suas riquezas. É optar entre estar ao lado de um ou de outro canalha.
As elites latino-americanas cheiram a podre, talvez esse seja nosso maior problema. Se instalaram para roubar, jamais se preocuparam com a população pobre e agora pagam o preço, que conseguiram evitar durante alguns anos com ditaduras sangrentas.
Nós, do Direito, temos idolatria às formas liberais do Estado. Eu mesmo tenho -- é fato. Mas não podemos também deixar de visualizar a situação de absoluto desespero de certas pessoas que vivem no limiar entre a vida e a morte. Para essas pessoas, não importa se o Governo tem três poderes, se há alternância no poder, ou coisa do gênero -- interessa comer, ter saúde, um lugar digno no mundo. Esses são zoé, não chegaram ao ponto de ser bíos. São os que Dussel [e isso é a única coisa que gosto de Dussel] não conseguem chegar ao diálogo: emitem uma "proto-palavra".
Ser latino-americano é, por isso, ter que olhar para o Norte e observar Estados organizados, discussões entre Habermas e Rawls, e perceber que não atingimos ainda, por um lado, estruturas sociais sólidas a ponto de começarmos esse tipo de discussão. Podemos aprender muita coisa com esses filósofos -- com Rawls, por exemplo, como pagar o funcionalismo público; com Habermas, como tentar uma emancipação sem assistencialismo -- mas ainda falta muito.
Vejam o caso dos ônibus que Hugo Chavez freta para "seus" manifestantes. Um liberal vê isso como o ato mais escroto que pode existir. Eu talvez gritasse "no a los autobuses", como fazem estudantes na Venezuela. Mas será que esses homini saceres -- essas "vidas nuas" -- teriam outra forma de comparecem à praça pública e gritar por alguém que os tirou da indiferença absoluta?
O caminho mais fácil, sem dúvida alguma, é o niilismo político. É simplesmente ignorar a realidade latino-americana, tachando todos os políticos de idiotas, as elites de podres e o povo de irrecuperável ou oprimido. Confortável, não?
Eu, no entanto, simplesmente me recuso a me tornar cínico. Os cínicos são combustível da direita. O conservadorismo se alimenta dos desencantados. Não existe neutralidade; quem está na vida, no tempo, na existência está em permanente decisão, como queriam pensadores como Rosenzweig, Levinas e Sartre. Não posso constatar essa realidade e permanecer de braços cruzados. Omitir já é fazer alguma coisa.
Por isso, apesar de infinitas restrições, acredito que o modelo brasileiro é o melhor que vem sendo seguido na América Latina. Embora não chancele em absoluto o Governo Federal do ponto de vista ético, quando se mostra exatamente igual aos que lhe antecederam, o que é uma lástima, uma vergonha, um fato desesperador, do ponto de vista político acredito que Lula fornece o melhor modelo; aliás, o menos pior. É difícil admitir isso [já foi fácil], mas tenho que me posicionar de alguma forma. Ficar esperando Habermas ou Rawls na América Latina não vai me levar a lugar algum. Nós não temos a sociedade minimamente organizada da qual eles partem.
Que um governante de esquerda devesse ir "muito mais longe" que Lula, me parece óbvio. Em todo caso, meu "ir mais longe" é provavelmente muito diferente do que o de 95% dos esquerdistas de base marxista. Talvez, da próxima vez, escreva sobre isso.



Trilha sonora do post: Low, "Violent Past".

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