Mox in the Sky with Diamonds

quarta-feira, março 11, 2009


O INUMANO

KID A. Poucos refletiram sobre o título desse álbum que, repetindo seu antecessor, pode ser catalogado como "conceitual". Poucos fizeram o elo entre "Kid A" do título e a canção "Kid A", que traz apenas um incompreensível murmúrio maquínico que acompanhado teclados frios e mensagens nonsense.
"Ok Computer" é a descrição da nossa época contemporânea. Indiferença, técnica e solidão existencial são componentes desse mosaico que compõe o habitante híbrido da metrópole dos nossos dias. Ok, computer é a primeira tentativa de simbiose entre homem e máquina, refratando os efeitos num espelho. "Kid A" mergulha profundamente na distopia melancólica que se apresenta pela frente.
"Kid A" é o anúncio de um futuro distante em que as máquinas venceram. Se um dia dialogarmos com as máquinas, "Kid A" certamente seria uma boa tentativa. O universo da cidade poluída, consumista, indiferente é substituído por aquele mundo negro e vazio que agora são as máquinas que administram. Um mundo pós-humano. Se "Ok Computer" é a fase seguinte da melancólica desilusão de "The Bends", "Kid A" é a fase seguinte da transição homem/máquina de "Ok Computer": o inumano.
"Ice age coming", anuncia "Idioteque" - surtada, gritando aos berros. "Everything in its right place", anuncia um robô paranóico desesperado pela ordem na primeira proto-música -- e repete, repete, repete. "Kid A" (a música), o nascimento da primeira criança "A" - anônima, igual, pura máquina. "The National Anthem": confuso hino nacional de um mundo de robôs alucinados. "In Limbo", "Optimistic", "Motion Picture Soundtrack" -- todos hinos de melancolia em um mundo já não mais habitado pela carne, um mundo anti-sangüíneo, um mundo em que o ser humano faz parte do passado e agora é comando por máquinas em programação esquizofrênica. "Kid A", o oposto simétrico de "The Bends".
Que bandas tiveram a capacidade genial de emendar DOIS álbuns conceituais, renunciando no posterior a tudo aquilo que fizera antes? Que bandas têm coragem de se reinventar ao extremo, em nome da crítica mais visceral à sociedade do espetáculo em que vivemos? Que banda que, evitando ser capturada pelo espetáculo, emite sinais cada vez mais confusos e apela para a paródia a fim de implodir o sistema?
No jogo contra o espetáculo, Kurt Cobain, há alguns anos, vira que o underground -- anti-espetáculo por definição [surge confrontando o "glam"] -- havia sido absorvido pelo próprio espetáculo, naquilo que Giorgio Agamben define como a capacidade da "religião capitalista" absorver suas próprias profanações. O Radiohead tenta escapar da armadilha invertendo o princípio e absorvendo o espetáculo como uma paródia sem qualquer resto de humor. A técnica é levada ao extremo -- até o ponto absurdo [lembrando o esforço kafkiano de ser mais realista que os "realistas", justamente por excedê-los no absurdo]. O país do Radiohead não tem mais nome, só imagens esparradas e sem nexo algum, como a máquina girando no vazio e exibindo a pura comunicação sem conteúdo. "The National Anthem" é um punhado de sons atordoantes que só podem refletir a doença humana. "How to disappear completely" é a evasão absoluta desse mundo -- estratégia adotada por "Kid A" ao imergir profundamente no inumano.
Essa virada temática -- do adolescente "Pablo Honey" e o melancólico "The Bends" aos gélidos últimos álbuns --, a sonoridade se transforma completamente e abandona qualquer vinculação ao rock tradicional. "Kid A" é a experiência do rock levada até a sua borda máxima, dançando na fronteira com a música eletrônica. O projeto inumano precisa de mais recursos que Thom Yorke não hesita em buscar na IDM, nos retro-futuristas do Kraftwerk, no trip hop e até no free jazz. É equivocado, no entanto, afirmar que "Kid A" abandona a "melodia"; é justamente esse o único elo que permanece com o rock'n'roll. "Kid A" é extremamente melódico e simétrico, ainda que por vezes deseje soar loucamente como esse mundo futuro povoado pelo inumano.
Levando a experiência do rock até a borda, o Radiohead conquista uma legião de detratores. Passa a ser odiado pela ala mais conservadora que reivindica a pureza aqui completamente destroçada, deixada de lado em nome da submersão absoluta nesse mundo pós-humano. A absoluta profanação do rock. O projeto gestual é demasiado ambicioso para alguns. Para outros, revela a genialidade de uma banda que não se conforma em lançar apenas uma obra-prima. Abre os anos 2000 e provavelmente os fechará como melhor disco.
Das belíssimas baladas ["How to disappear completely" é a música favorita da banda], passando por desvairios experimentais ["Everything in its right place" e sua monotonia paranóica, "The National Anthem", cheia de elementos jazzísticos], variações climáticas ["In Limbo", "Motion Picture Soundtrack", "Treefingers"], a épice "Morning Bell" até clássicos de pista como "Idioteque" -- todas compõem um álbum fechadinho, extremamente bem trabalhado e produzido, ousado, capaz de absorver a tecnologia na maior radicalidade. Considerado espécie de rompimento com o rock por ter rompido com as guitarras [o que não é verdade; "Treefingers", por exemplo, é com guitarras -- o que não há são os riffs rasgados de Greenwood que marcaram época].
E se alguma dúvida havia que o Radiohead estava acima de todas as outras bandas, aqui a dúvida é abandonada por toda mídia musical. A banda passa a ser venerada como a vanguarda do rock. O rompimento de estilo [que só encontra comparação na história dos Beatles, de quem o Radiohead é o legítimo sucessor, e não o Oasis, que é sucessor dos Stones] é feito com lisura, precisão, maestria e absoluta propriedade. "Kid A" é a prova poderosa da superioridade musical e intelectual do Radiohead sobre todos os seus contemporâneos.




(Ao contrário do que diz a legenda, essa não é versão do álbum).


(Vídeo não-oficial).


(Vídeo não-oficial hilário. Lembrança: "Kid A" não tem vídeos).

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