A GÉLIDA CONTEMPORANEIDADE
SE O RADIOHEAD TIVESSE parado em "The Bends", seria uma grande banda, mas seria apenas mais um brilhante grupo de britpop, ao lado de Oasis, Blur e outros. "Fake Plastic Trees" e "Black Star" seriam clássicos ao lado de "Don't look back in anger" e "There's no other way". E já seria bastante coisa. Baladas melódicas, letras críticas e singles inspirados são componentes de grandes álbuns, mas essa grandeza é compartilhada por várias bandas. É somente com "Ok Computer", em 1997, que o Radiohead se apresenta como excepcional.
A despeito de eventuais referências possíveis ["The Dark Side of the Moon" é a mais óbvia], "Ok Computer" é a certidão de nascimento da primeira banda do século XXI. Ou algo próximo disso.
Embora recheado da melancolia extrema, já não lembra mais "The Bends" na sua doce e quase romântica crítica juvenil. Aqui, ao contrário, trata-se de uma melancolia gélida, quase opaca. Mais que um "xingar" o vazio, aqui se trata de viver no vazio. Não se trata mais de roqueiros criticando seu mundo; trata-se da construção de um gigantesco espelho da contemporaneidade. "Ok Computer" é menos "sangüíneo" que "The Bends" - sua fria técnica é o sinônimo da era da indiferença, do anonimato, da serialização e dos campos de concentração. A repetição midiática parece bater aqui enquanto um mantra que enuncia o ritmo tortuoso da vida contemporânea. A sujeira das cidades, a publicidade abusiva, o consumo como felicidade desidratada, a glorificação da tecnologia, o vazio da solidão, a substituição de um tempo vivido por um tempo paralisado na monotonia da rotina sufocante e estressante, a velocidade desnecessária, a esquizofrenia coletiva - todos esses elementos compõem o mosaico dos nossos dias desenhados no "conceito" de Ok Computer.
"Ok Computer" - o título já diz muito. Desta vez, o Radiohead não enfrenta o computador com a fragilidade do humano, com a melancolia extrema de canções tocantes (ex. "Nice Dream") e guitarras cortantes, mas se entrega plenamente a ele - deixa-se levar pela tecnologia e nela embarca. Daí que esse mosaico humano/inumano componha o tempo inteiro esse disco ambivalente, aventura em que a combinação rock/eletrônica atinge o topo. Os seres habitantes do álbum não são mais jovens rebeldes de jaquetas de couro e calças jeans, mas híbridos melancólicos que transitam entre o homem e a máquina. Como a criatura que alimenta de "Paranoid Android", sinceramente alucinada naquilo que não sabemos se tratar de delírio ou de puro e simples absurdo kafkianamente realizado. Aquilo que era calor e sangue em "The Bends" aqui é frio e técnico, como o nosso mundo repleto de angústia, desespero, stress e desesperança.
A máquina pela primeira vez pode entrar pela porta da frente. Ok, Computer. Nosso sonho de pureza humana foi despedaçado. Nenhuma lágrima e ser derramada - ela congelaria.
É assim que a aventura inicia na ironia do "Airbag", passa pelo delírio de um andróide paranóico, mergulha nas profundezas da melancolia sem arredar o pé um centímetro em "Subterranean Homesick Alien" e "Exit Music (for a film)", desvela a solidão da cidade sem vida em "Let down", crítica o controle social em "Karma Police", destrói o consumista-vazio contemporâneo em "Fitter Happier", provoca choques elétricos na política em "Electioneering", devasta e arrebata em "Climbing up the walls", entristece no mundo sem esperança de "No surprises" ["no alarms and no surprises... Silence"] e completa o mergulho na completa ausência de sentido nas gélidas "Lucky" e "The Tourist" [crítica que antecipa Bauman na metáfora do turista - hey, man, slow down! slow down, idiot"]. Quando o álbum termina, a tristeza absoluta que paira talvez seja capaz de provar musicalmente a similitude entre a tecnologia do consumo e a que fabricou os campos de concentração. Frieza e opacidade entre ambas.
E, musicalmente, "Ok Computer" também é genial. Ok, Computer. Fórmula que, de certa forma, reduz hoje o rock'n'roll a um esforço nostálgico levado deliciosamente a cabo por bandas como os Strokes ou os Libertines. Depois dele, o rock jamais pôde ser o mesmo, contaminou-se para sempre da eletrônica e mutou-se para outro formato. Tudo que é diferente parece respirar o ar da ingenuidade.
Não há como descrever a sensação de plenitude que passa ao ouvinte de "OK Computer". Cada textura de guitarra parece ter sido minuciosamente planejada, em sincronia absoluta com os demais instrumentos. O que dizer dos teclados que explodem em "Exit Music (for a film)"? Ou do encontro de vocais que culmina em momento redentor em "Let Down"? Da virada melódica perfeita levada a cabo por "Paranoid Android"? [Considero a comparação com "Bohemian Rapsody" ofensiva.] O que dizer das novas baladas, desta vez conduzidas sem momentos explosivos, na mais pura tristeza desesperançada, como "Karma Police", "Lucky" e "No surprises"? Da agressividade que começa em "Electioneering" e engole o ouvinte em "Climbling up the walls? Todo contorno melódico parece absolutamente perfeito, simétrico, cuidadosamente trabalhado até o ponto-limite.
O que mais dizer de "Ok Computer"? Que não é apenas irônico, mas assume o risco de levar ao extremo a vida contemporânea na crítica mais corrosiva levada a cabo por uma banda de rock? Que o ouvinte que presta atenção não pode sair senão devastado ao constatar a brutalidade das estruturas frias que corróem qualquer momento de "calor" que poderia dar vida a esse mundo indiferente, asséptico, consumista e vazio? Que é um trabalho de espelho, capaz de dilacerar a nossa cultura por dentro, extremando os seus conceitos-chave? O que dizer do robô que narra a vida do típico cidadão de classe média em "Fitter Happier" e parece escancarar justamente a natureza maquínica desse homem?
Não tenho mais nada para dizer.
Só que, para mim, isso é o que melhor foi feito em termos de música por um ser humano.
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