Mox in the Sky with Diamonds

quarta-feira, outubro 17, 2007


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DUELO DE GIGANTES

Acreditem: para algumas pessoas, LER é realmente uma coisa legal. E, mais ainda: PENSAR é uma coisa divertida. Nem todo mundo gosta de assistir novela. Nem todo mundo MENTE quando afirma que realmente não gosta de televisão.
Minha emoção ao ler "Três Tempos sobre a História da Loucura", uma coletânea organizada pela Relume-Dumará contendo uma conferência de Jacques Derrida sobre o famoso livro de Foucault, e a resposta do próprio, logo em seguida, finalizando com um artigo publicado por Derrida vinte anos depois, foi equivalente a assistir uma partida entre Real Madrid e Barcelona: clássico em campo.
Derrida inicialmente faz uma crítica a Foucault: segundo ele, para que Foucault fizesse o que queria, "dar voz à loucura, ela mesma", só mesmo fazendo silêncio ou se retirando. Toda vez que uma palavra é emitida já estamos no logos, e portanto já se está na estrutura que aprisiona a loucura. Depois, Derrida critica a transição de epistemes que Foucault procura ver em Descartes. Foucault diz que, na primeira meditação, Descartes [buscando certezas indubitáveis] afirma: mas eu não poderia negar isso [que estou aqui, diante do fogo], a menos que fosse um louco. Nesse momento, a loucura é excluída do Cogito, exclusão absoluta da loucura -- é deixada de lado e jamais recuperada. Derrida vê, ao contrário, que a loucura é constitutiva do Cogito: a dúvida hiperbólica de Descartes pressupõe que MESMO QUE fosse louco, ainda assim: penso, logo existo. A hipérbole seria mesmo a idéia do sonho, mais radical que a loucura. Por isso, a dúvida hiperbólica cartesiana não teria excluído a loucura, comprometendo todo o desenvolvimento posterior da obra de Foucault, que fala da loucura na "época clássica".
A resposta de Foucault não foi, inicialmente, das mais cordiais. Criticou Derrida por tomar três páginas como a totalidade da sua obra. Mas o cerne da crítica foi: Derrida considera que a filosofia funda tudo, e por encontrar um furo filosófico na sua teoria acredita tê-la derrubado por inteiro. Após, mantém sua interpretação de Descartes, afirmando que tudo se passa em séries e a loucura é, sim, excluída.
Ao contrário da maioria dos críticos do texto de Foucault, a maioria ao lado de Derrida, acredito que ambos filósofos tinham razão em parte. O que muda é o que interessa a eles.
A Derrida interessa mostrar os pontos de indecidibilidade das teorias filosóficas, com a impossibilidade de fechamento. Por isso, ele quer ver em Descartes um ponto - a dúvida hiperbólica - um momento em que é indecidível se sou louco ou não. Trata-se de algo que escapa do "logocentrismo". Isso é típico da "desconstrução" -- mostrar, com os próprios conceitos dos "logocentristas", como esse fechamento (clôture) não se opera. Nada menos estruturalista, e é exatamente o estruturalismo de Foucault que Derrida está a criticar.
Mas a crítica de Foucault também é muito séria. Foucault endereça a Derrida a mesma crítica que posteriormente Rorty fará: a idéia dos filósofos que o "logocentrismo" é que nos governa, que são os sistemas filosóficos que definem a realidade, enfim, uma certa espécie de narcisismo filosófico. A Foucault interessavam sobretudo os acontecimentos: como tal, a filosofia não tinha qualquer preponderância.
Na discussão propriamente filosófica, os argumentos de Derrida me parecem mais poderosos. Sua interpretação de Descartes, mais sólida. Mas, fora desse terreno, me parece que Foucault tem razão. Ou seja, ambos estavam certos, o que mudava era o que buscavam. Foucault queria uma arqueologia do silenciamento da loucura; Derrida, uma fuga de todo fechamento filosófico. Por isso, para Derrida era tão importante enfatizar que falar da loucura, "ela própria", não podia ser feito da forma estruturalista: era o problema da alteridade, como mais tarde ficará claro, que o preocupava. O problema do clôture é um problema de alteridade. No caso da loucura, com maior razão. Foucault, por outro lado, estava preocupado com o problema do poder, da produção de corpos dóceis, da normalização.
Gênios em conflito, maravilha!


ESTAMIRA

Estamira (Brasil, 2004, Dir. Marcos Prado) é um belo documentário que se está nas trincheiras da discussão Derrida/Foucault.
Como ouvir a loucura, senão lhe dando voz?
Estamira, a personagem, tem momentos de explosão geniais, como as metáforas sobre o cuidado com as quais justifica sua condição, vivendo no lixo, e por vezes irrompe insuportavelmente aos nossos olhos na sua alteridade incontrolável. Impressiona que, mesmo provavelmente esquizofrênica, constrói um mundo repleto de sentido e coerência -- uma verdadeira ontologia.
Há momentos quase intoleráveis, que rompem com a ordem do nosso universo traumaticamente, e belas lições que podemos aprender, interpretando fenomenologicamente suas afirmações.
Catadora do lixo no RJ, Estamira fascina àqueles que estão abertos ao Totalmente Outro, que não pede licença nem fala nosso idioma. O filme de Marcos Nobre, por isso, se para alguns pode esbarrar em limites éticos, é, ao contrário, extremamente ético, reto -- deixa o Outro falar por si só.



Trilha sonora do post: Metric, "Love is a place".